17 de abr. de 2009

Caneta que falha

Ela estava deitada no sofá da sala. Era um desses sofás que se abrem parar formar uma cama de casal perfeita não fosse o vão entre as almofadas. Sobre ela, um edredom vermelho. Vermelho como seu celular, como sua antiga pasta, como seus cabelos. Vermelho como a paixão que lhe inflamava as veias. Assistia um filme qualquer que passava na televisão (sem saber afirmar se era dublado ou legendado) enquanto chorava baixinho. E o fazia por medo que o filme se apiedasse dela e desviasse o próprio rumo.

Ela perdera o rumo. Perdera-o juntamente com o fluxo criativo enquanto preenchia as linhas da carta endereçada a ele. perdera tudo quando a caneta começou a falhar. A tinta não era mais a mesma, as palavras ficavam pela metade, as letras saiam falsas. E nada era falso!

Escrevia sobre o dia em que se conheceram, sobre a vontade de conhece-lo antes, sobre a vontade igualmente grande de não o ter conhecido antes. Escrevia sobre a noite fria em que sua pele arrepiava sob o micro short que usava enquanto conversavam no sereno, sentados em cadeiras de plástico na areia em meio a festa de carnaval bebendo da cerveja, já quente,  que ainda restava nos copos. Escrevia sobre a falta de memória que a impedia de saber a sucessão dos fatos daquela noite, não sabia como o beijou (ou foi ele quem o fez?), não sabia como chegara em casa. As sincronias e diacronias eram importantes para ela, seria historiadora, afinal.

Escrevia sobre a ausência dele na festa do dia seguinte, ainda era carnaval e, como em outros anos, teria histórias para contar. Escrevia sobre como tudo parecia sem graça, sobre como ele, de alguma forma misteriosa, parecia aquece-la em sua ausência. Escrevia sobre como aquela noite fora regada apenas a água, não queria beber, cerveja a fazia perder a razão e a razão era o que o fazia continuar em sua mente exausta de pensar.

Escrevia sobre como o dia de domingo fora surreal. A priori não queria sair de casa. O medo de esperar por ele e não encontra-lo fazia parecer mais amigável permanecer em casa. mesmo assim, saiu. Foi ao clube, maquiou o cunhado para que ele jogasse futebol e permaneceu no bar, servindo cerveja. Novamente não se recordava de quando e como ele chegou, sabia apenas que ele não a deixava servi-lo, tirava a garrafa de suas mãos e sorria. Sabia apenas que de repente ele estava dentro do bar, com ela, e a beijou. Era impossível recordar os diálogos. Desnecessário também. O que valia lembrar era de se sentar no colo dele, fumar do mesmo cigarro que ele e levantar diversas vezes para servir os outros. E então veio a noite, o descanso de quem está só. Vieram os seguranças pedir que se retirassem do clube. Veio a irmã pedir para que ele a levasse pra casa. ela tinha noção do que pedia? Talvez tivesse.

Escrevia sobre como ficara com vergonha ao entrar no carro dele com mais um casal que deixariam em casa também. Mas mais que isso, escrevia sobre como ficara aliviada ao deixar o ultimo passageiro em casa e ser abraçada por ele enquanto o mesmo dirigia subindo os morros da cidade em direção a casa dela. Disso ela lembrava. Lembrava de pararem o carro a poucos metros da casa dela e verem que os pais da moça a aguardavam do lado de fora. Lembrava de saírem com o carro a procura de um lugar deserto para uma despedida apropriada. E encontraram! E ele dissera ‘deixa eu te abraçar bem forte’ e os abraços e os beijos e o sexo, tudo foi extremo pra ela. O extremo do prazer.

Escrevia sobre como os pais a encararam quando chegara em casa. Sobre como comera correndo para poder chegar a tempo de entregar as coisas que prometera levar para a irmã, sobre como desviara o assunto quando os pais perguntaram com quem viera. Sobre como agora torcia para que eles não ligassem o nome a pessoa. Escrevia sobre como esperara por ele e a hora não passava e passava rápido demais porque ele iria embora a meia noite. E sobre como se iluminou ao vê-lo, mesmo cercado pelas irmãs e como ele a ajudara a fugir de outro homem com o qual ela não queria ficar. Recordava-se de quando fora expulsa do bar por um amigo e fora procura-lo para não ficar sozinha e desta vez ele sabia como provoca-la, sabia que ela não desviaria do soco quando a oportunidade surgisse, por isso dissera ‘vamos agora então’ e sorrindo, ela concordou ‘só se for agora’. E entraram no carro novamente, desta vez sozinhos.

Ela ria sozinha ao recordar que o copo dele fora esquecido sobre o carro e caíra quando subiram o morro. Não sabia onde ele a levaria, sabia que seria uma rua escura, deserta, mas assustou-se quando ele entrou em um bairro chique. Imaginou como seria se alguém saísse de casa e os visse. E enquanto imaginava, ele acariciava suas pernas, nuas devido a mini saia. ‘você podia por um piercing no umbigo’, ‘não!’. E ele estacionou de repente, desligou o carro, o rádio, os faróis e pôs-se a beija-la sem demora, ardendo de desejo. Ao corresponde-lo, sentia-se pouco a pouco entregue. O extremo parecia persegui-la aquele dia. A linha tão tênue entre dor e prazer tornara-se curva, a curva perfeita para faze-la delirar, ir ao céu e ao inferno e desejar uni-los numa explosão de gozo e dor. As marcas daquele sexo, como a dor nas costas depois de bater por vezes sucessivas no volante, a acompanhariam por dias. E subitamente, ele foi embora. Depois de entregar a calcinha dela que misteriosamente fora parar embaixo do banco dele e beija-la ainda dentro do carro, ela desceu e entrou novamente no clube para terminar a festa que já estava encerrada, sem que nenhum dos dois soubesse.

E depois veio a espera. A espera pela caneta que voltasse a funcionar. A espera para escrever sobre como os dias depois de domingo tardaram a passar, sobre como a sua mudança pareceu infinita e sobre como desejou matar os pais quando eles decidiram passar um dia a mais com ela, atrapalhando seus planos.

Parecia impossível agora expressar como ela ficou feliz quando ele disse que iria vê-la no dia seguinte para que pudessem planejar um novo encontro. Ou como ele estava lindo ao sair do elevador segurando uma Heinekein pela metade e sorrindo pra ela que, nervosa, não sabia como agir. De tão tola que era, esquecera-se de abrir o sofá para que deitassem mais confortavelmente. E naquele dia estava menstruada e mesmo assim eles se divertiram. Adormeceram abraçados sem pudor, sem medo.

E nas outras vezes as coisas só melhoraram. Melhoraram quando ela se deixou possuir por ele de corpo e alma. Melhoraram quando passaram a confiar um no outro e a conversar e não somente falar.

E agora a caneta, falha, a impedia de ordenar seus pensamentos e emoções. Entregue ao choro, como quando ele não respondera suas ligações e mensagens, recordava dele dormindo em seu colo as cinco e meia da tarde nos dias em que ele decidia passar o horário de almoço com ela. Recordava dele chegando para vê-la depois que ela lhe pediu um ombro para chorar, vestia preto, e ele rira quando ela pediu um beijo decente (‘venha aqui então’), e ele a abraçara quando ela se virou depois que o despertador dele tocou, a abraçara e beijara suas costas e seus ombros, tal como ela fazia, e brincara com seus cabelos e rira quando ela pediu ‘você quer que eu acorde?’, ‘não, pode dormir’.

E mesmo com a caneta falhando, mesmo com as dores que acumulara no corpo, mesmo com o perfume dele ainda presente no travesseiro, ainda era possível recordar os sorrisos, os abraços, as frases, as provocações, tudo que tornara aquele relacionamento, tão infante, tão especial pra ela.

‘Desculpe se eu exagero nas coisas’. ‘Tá desculpada’.  

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