3 de mai. de 2009

Deles...

Quem poderia imaginar?

Quem acreditaria caso alguém falasse sobre a mudança dela?

Aquela menina que sempre foi a pegadora, que sempre foi extrema, agora apaixonada, agora presa a um homem só... aquela mesma que nunca saía de uma festa sem ao menos beijar alguém, aquela que tinha fantasias absurdas e extravagantes, aquela que não se entregava a ninguem agora estava ali, deitada na cama, no escuro, recordando...

Relembrando as semanas anteriores, alguns dias apenas. Aqueles dias pelos quais valia a pena viver a semana toda, seja para espera-los, seja para recorda-los.

Mas o travesseiro que usava agora não tinha mais o cheiro dele. Não tinha mais o perfume da Natura que ela esquecera o nome. Não cheirava mais ao desodorante 212 man. Não cheirava mais ao sexo da noite anterior. Talvez fosse isso... mas não somente.

O que a atraíra nele? Não sabia ao certo. Quem sabe tivesse gostado da aparência dele, no inicio. Lembrava vagamente de querer pedir um cigarro dele, mas a vergonha a impedira. Era tímida, afinal. E ele só descobrira tempos depois. Lembrava dele tirando a garrafa de cerveja de suas mãos frias, ora pelo frezzer, ora naturalmente. Mas fora mais que isso.

Olhando pela janela, para o lugar exato em que teve o primeiro contato de âmbito sexual com ele, percebia que os confetes já não caiam mais. O carnaval se fora há dois meses. Dois meses se passaram sem que dormisse com outra pessoa. Era um recorde pra ela. Um recorde do qual, ao contrario dos outros, se orgulhava. E embora os confetes não mais caíssem, os últimos grudaram em sua pele suada.

A pele suada que adorava ter embaixo do seu corpo. A pele quente do mesmo dono cujo sexo invadia o seu. A pele suave do mesmo dono que dormia ao seu lado ou a abraçava em longas horas de insônia. A pele marcada por unhas, mordidas e chupões...

Quando olhou para o lado, quase pode vê-lo. Foi como quando acordou de madrugada e não acreditou que ele estava dormindo ao seu lado, numa intimidade que nunca tivera igual. Pensara estar sonhando. Estava, no presente, mas não no contexto.

Analisando o ultimo, percebia que desde o domingo em que ele fora embora da festa, o mesmo domingo em que a levara pra casa depois de estacionar o carro numa rua paralela para saciar a sede de prazer de ambos, desde tal dia pensava nele. Entrara em casa com o mesmo sorriso contido que tinha nos lábios cada vez que ouvia o nome dele. Andrei.... Andrei... a musicalidade do nome seguia a musicalidade do toque, do andar, do abrir a porta do elevador e acender a luz do corredor e os passos arrastados e o sorriso brincando com os lábios e o corpo dela de encontro da porta e o cumprimento e as mãos dele tocando o rosto dela e as mãos dela tocando a nuca e o pescoço dele e o beijo e a mochila sendo deixada sobre a mesa e a porta sendo trancada...

Tudo isso fazia falta agora. Parecia distante. Parecia surreal.

Diante do escuro, do quarto que era seu mas no qual não se sentia em casa, diante das perspectivas frustradas que as paredes guardavam em segredo, diante da janela que gritava enquanto apontava para a rua deserta, diante das musicas que ouvira com ele, diante das lembranças, deixava as lagrimas rolarem pelo rosto. Lagrimas estas carregadas de todo sal que poderia eliminar, porque devia estar doce pra ele. o mais doce possível para quem sabe ouvi-lo repetir ‘Que querida que você está hoje’.

Agora só queria lembrar. Por isso não podia se explicar, por isso não podia conversar ou elaborar qualquer pensamento lógico. Porque a lógica estragaria a magia do momento que viveram juntos. Qualquer palavra mancharia o momento em que ele disse ‘nós dois’, deitado ao lado dela, abraçava-a enquanto ela assistia seu seriado favorito e ele, por sua vez, já deveria estar no trabalho.

E o Andrei que conhecera no carnaval, cujo sexo fora o melhor que já provara, mudara. O sexo com ele mudara, as palavras dele mudaram. E naquele dia ele realmente quis aconselha-la, coisa que ela não pôde deixar. Não suportaria ouvi-lo concordar com os pais, os mesmos pais que a chamavam de vadia e drogada. Era apenas uma criança que usava maquiagem e alisava os cabelos.

Uma criança que ele estava conhecendo, talvez até gostando...não, não talvez, era fato. Ele dissera. E dissera com um dizer embaçado, torcido, como se não quisesse ser pronunciado e como se a pronuncia não pudesse alcançar a magnitude do sentimento. Nenhuma palavra conseguiria. E ela acreditava.

Acreditava da mesma forma que acreditou quando ele dissera que estava a dez dias sem fumar, como acreditou que ele achava que ela era vegetariana. Enganara-se. Depois descobriu como faze-la arrepiar. Descobriu o prazer de dar prazer a ela. Descobriu até mesmo que ela estava a um passo de ama-lo. E mais ainda, descobriu que ela, em sua inocência e incoerência, não esperava que ele retribuísse pronta ou proporcionalmente. Ela ficaria feliz em saber apenas que ele pensara nela, ou que esperara pela ligação dela que nunca chegou e não fez valer o dia.

E agora, aquela menina que ninguem acreditava ser capaz de se amarrar, lembrava das frases trocadas por eles durante o sexo, depois do sexo, das conversas... lembrava dele jogando água nela por cima do boxe, molhando todo o banheiro... lembrava de acordar sorrindo por vê-lo espreguiçar ao seu lado e abraça-lo antes de preparar o café da manhã. Mas lembrava, sobretudo, da alegria que se instalava em seu peito de gelo quando ele estava ao seu lado.

Ninguem acreditava, nem mesmo o espelho. E era uma descrença bem vinda, porque aqueles eram momentos dela...deles.

17 de abr. de 2009

Caneta que falha

Ela estava deitada no sofá da sala. Era um desses sofás que se abrem parar formar uma cama de casal perfeita não fosse o vão entre as almofadas. Sobre ela, um edredom vermelho. Vermelho como seu celular, como sua antiga pasta, como seus cabelos. Vermelho como a paixão que lhe inflamava as veias. Assistia um filme qualquer que passava na televisão (sem saber afirmar se era dublado ou legendado) enquanto chorava baixinho. E o fazia por medo que o filme se apiedasse dela e desviasse o próprio rumo.

Ela perdera o rumo. Perdera-o juntamente com o fluxo criativo enquanto preenchia as linhas da carta endereçada a ele. perdera tudo quando a caneta começou a falhar. A tinta não era mais a mesma, as palavras ficavam pela metade, as letras saiam falsas. E nada era falso!

Escrevia sobre o dia em que se conheceram, sobre a vontade de conhece-lo antes, sobre a vontade igualmente grande de não o ter conhecido antes. Escrevia sobre a noite fria em que sua pele arrepiava sob o micro short que usava enquanto conversavam no sereno, sentados em cadeiras de plástico na areia em meio a festa de carnaval bebendo da cerveja, já quente,  que ainda restava nos copos. Escrevia sobre a falta de memória que a impedia de saber a sucessão dos fatos daquela noite, não sabia como o beijou (ou foi ele quem o fez?), não sabia como chegara em casa. As sincronias e diacronias eram importantes para ela, seria historiadora, afinal.

Escrevia sobre a ausência dele na festa do dia seguinte, ainda era carnaval e, como em outros anos, teria histórias para contar. Escrevia sobre como tudo parecia sem graça, sobre como ele, de alguma forma misteriosa, parecia aquece-la em sua ausência. Escrevia sobre como aquela noite fora regada apenas a água, não queria beber, cerveja a fazia perder a razão e a razão era o que o fazia continuar em sua mente exausta de pensar.

Escrevia sobre como o dia de domingo fora surreal. A priori não queria sair de casa. O medo de esperar por ele e não encontra-lo fazia parecer mais amigável permanecer em casa. mesmo assim, saiu. Foi ao clube, maquiou o cunhado para que ele jogasse futebol e permaneceu no bar, servindo cerveja. Novamente não se recordava de quando e como ele chegou, sabia apenas que ele não a deixava servi-lo, tirava a garrafa de suas mãos e sorria. Sabia apenas que de repente ele estava dentro do bar, com ela, e a beijou. Era impossível recordar os diálogos. Desnecessário também. O que valia lembrar era de se sentar no colo dele, fumar do mesmo cigarro que ele e levantar diversas vezes para servir os outros. E então veio a noite, o descanso de quem está só. Vieram os seguranças pedir que se retirassem do clube. Veio a irmã pedir para que ele a levasse pra casa. ela tinha noção do que pedia? Talvez tivesse.

Escrevia sobre como ficara com vergonha ao entrar no carro dele com mais um casal que deixariam em casa também. Mas mais que isso, escrevia sobre como ficara aliviada ao deixar o ultimo passageiro em casa e ser abraçada por ele enquanto o mesmo dirigia subindo os morros da cidade em direção a casa dela. Disso ela lembrava. Lembrava de pararem o carro a poucos metros da casa dela e verem que os pais da moça a aguardavam do lado de fora. Lembrava de saírem com o carro a procura de um lugar deserto para uma despedida apropriada. E encontraram! E ele dissera ‘deixa eu te abraçar bem forte’ e os abraços e os beijos e o sexo, tudo foi extremo pra ela. O extremo do prazer.

Escrevia sobre como os pais a encararam quando chegara em casa. Sobre como comera correndo para poder chegar a tempo de entregar as coisas que prometera levar para a irmã, sobre como desviara o assunto quando os pais perguntaram com quem viera. Sobre como agora torcia para que eles não ligassem o nome a pessoa. Escrevia sobre como esperara por ele e a hora não passava e passava rápido demais porque ele iria embora a meia noite. E sobre como se iluminou ao vê-lo, mesmo cercado pelas irmãs e como ele a ajudara a fugir de outro homem com o qual ela não queria ficar. Recordava-se de quando fora expulsa do bar por um amigo e fora procura-lo para não ficar sozinha e desta vez ele sabia como provoca-la, sabia que ela não desviaria do soco quando a oportunidade surgisse, por isso dissera ‘vamos agora então’ e sorrindo, ela concordou ‘só se for agora’. E entraram no carro novamente, desta vez sozinhos.

Ela ria sozinha ao recordar que o copo dele fora esquecido sobre o carro e caíra quando subiram o morro. Não sabia onde ele a levaria, sabia que seria uma rua escura, deserta, mas assustou-se quando ele entrou em um bairro chique. Imaginou como seria se alguém saísse de casa e os visse. E enquanto imaginava, ele acariciava suas pernas, nuas devido a mini saia. ‘você podia por um piercing no umbigo’, ‘não!’. E ele estacionou de repente, desligou o carro, o rádio, os faróis e pôs-se a beija-la sem demora, ardendo de desejo. Ao corresponde-lo, sentia-se pouco a pouco entregue. O extremo parecia persegui-la aquele dia. A linha tão tênue entre dor e prazer tornara-se curva, a curva perfeita para faze-la delirar, ir ao céu e ao inferno e desejar uni-los numa explosão de gozo e dor. As marcas daquele sexo, como a dor nas costas depois de bater por vezes sucessivas no volante, a acompanhariam por dias. E subitamente, ele foi embora. Depois de entregar a calcinha dela que misteriosamente fora parar embaixo do banco dele e beija-la ainda dentro do carro, ela desceu e entrou novamente no clube para terminar a festa que já estava encerrada, sem que nenhum dos dois soubesse.

E depois veio a espera. A espera pela caneta que voltasse a funcionar. A espera para escrever sobre como os dias depois de domingo tardaram a passar, sobre como a sua mudança pareceu infinita e sobre como desejou matar os pais quando eles decidiram passar um dia a mais com ela, atrapalhando seus planos.

Parecia impossível agora expressar como ela ficou feliz quando ele disse que iria vê-la no dia seguinte para que pudessem planejar um novo encontro. Ou como ele estava lindo ao sair do elevador segurando uma Heinekein pela metade e sorrindo pra ela que, nervosa, não sabia como agir. De tão tola que era, esquecera-se de abrir o sofá para que deitassem mais confortavelmente. E naquele dia estava menstruada e mesmo assim eles se divertiram. Adormeceram abraçados sem pudor, sem medo.

E nas outras vezes as coisas só melhoraram. Melhoraram quando ela se deixou possuir por ele de corpo e alma. Melhoraram quando passaram a confiar um no outro e a conversar e não somente falar.

E agora a caneta, falha, a impedia de ordenar seus pensamentos e emoções. Entregue ao choro, como quando ele não respondera suas ligações e mensagens, recordava dele dormindo em seu colo as cinco e meia da tarde nos dias em que ele decidia passar o horário de almoço com ela. Recordava dele chegando para vê-la depois que ela lhe pediu um ombro para chorar, vestia preto, e ele rira quando ela pediu um beijo decente (‘venha aqui então’), e ele a abraçara quando ela se virou depois que o despertador dele tocou, a abraçara e beijara suas costas e seus ombros, tal como ela fazia, e brincara com seus cabelos e rira quando ela pediu ‘você quer que eu acorde?’, ‘não, pode dormir’.

E mesmo com a caneta falhando, mesmo com as dores que acumulara no corpo, mesmo com o perfume dele ainda presente no travesseiro, ainda era possível recordar os sorrisos, os abraços, as frases, as provocações, tudo que tornara aquele relacionamento, tão infante, tão especial pra ela.

‘Desculpe se eu exagero nas coisas’. ‘Tá desculpada’.  

21 de mar. de 2009

Homossexual

E das coisas que eu não entendo talvez a maior seja a desconfiança. Não venham me dizer que é proteção. Não! quem ama de verdade deixa as coisas livres. Quem ama preserva e não prende.

Mas por trás da desconfiança existe inveja e rancor. Inveja por que a grama do vizinho sempre parece mais verde. E as pessoas privam e humilham as outras porque o ser miserável precisa humilhar o seu igual para se sentir superior. Só que humilhação tem limites.

Essa historia de ‘viva a diversidade’ tem um discurso lindo. Mas é apenas discurso. Quando as pessoas se deparam com um homossexual na família, por exemplo, fazem de tudo pra esconder, oprimir. Como se fosse um vírus, uma doença que pudesse ser exterminada na prisão domiciliar. Não se pode falar, não se pode discutir. Ponto de vista já não existe. Nem amor.

Porque parece que o amor cessa com a descoberta. Parece que o amor de pai e mãe se encolhe mediante a vergonha. Vergonha da felicidade alheia.

Já que pra ser homossexual no Brasil é preciso se mudar pros Estado Unidos. Não é o primeiro caso conhecido e nem será o ultimo. Ao menos lá, longe do preconceito da própria família, o preconceito da sociedade não parece afetar tanto. Já não ofende tanto quando as palavras não vem da boca das irmãs, dos irmãos, dos pais, dos tios... Parece não ter mais tanto sentido e em certas situações torna-se até humorado. Mas quando a ofensa vem dos seus, é impossível permanecer imóvel.

É como ouvir da boca de sua mãe; Você é uma vadia.

É impossível de esquecer ou perdoar. A mágoa se torna eterna e o vírus, seja qual for, anseia mais ainda a liberdade. O opção feita reverbera pelas veias na tentativa de rompe-las definitivamente.

Morrer seria uma alternativa.

Morrer pela causa.

Morrer pela liberdade.

Morrer pra poder, enfim, voar.

Fugir

E quando penso em fugir, já não tenho mais coragem. Algo me prende aqui. Algo que foge às teorias, foge a qualquer explicação. A diferença entre mim e as outras pessoas é que não sou capaz de sentir verdadeiramente saudade das coisas. Porque saudade se sente quando as coisas terminaram, quando as pessoas vão definitivamente embora, e as coisas e as pessoas continuam em mim, pulsam nas minhas veias aumentando a pressão, ansiando por explodir comigo e consigo.

As memórias na minha agenda ainda me consomem, tal como o cheiro de cigarro e maconha que ficou no ar, tal como a cama desarrumada e vazia, os travesseiros organizados cuidadosamente, a xícara imóvel sobre a mesa e o isqueiro em minhas mãos. A eterna lembrança das palavras que soaram quase como um ‘eu te amo’, mas que na verdade foram ‘eu poderia ter te deixado um beck pronto, caso você queira fumar depois’. E por mais que digam que é errado, que é loucura ou que é coisa de puta, prossigo até que meu coração decida parar de bater.

Porque ir pro inferno, por ir pro inferno, assinei minha sentença com floreios há anos. Dormi com ele e com ele e com ele... Bebi demais, fumei demais. Afinal, humana é o que eu sou. Anjo, deixei de ser há tempos, apenas a máscara permaneceu. A fantasia imaculada de anjo calmo, protetor e preocupado com os outros.

Mas a medida que a ausência, nunca saudade, foi aumentando progressivamente, meu mundo foi desmoronando. Em meio a sons, cores (como a luz da sala, que subitamente ficou verde), emoções, lágrimas, gemidos de prazer e dor, puxões de cabelo, palavras soltas me perseguiam. Fantasmas em pânico. Urgentes de atenção, as palavras eram nada mais que fragmentos de frases nunca ditas, de sentimentos nunca sentidos, ilusões nunca vividas em plenitude.

Tal ausência me provoca desejos, arranca sensações. Desejos de álcool, sexo, drogas, rock n’roll, café, chocolate, livros. A ausência me ensinou a compreender meu passado, porque não existe história sem essa concepção. Me ensinou a não querer mudar o que já aconteceu, me ensinou a aceitar apenas. Esses ensinamentos foram essenciais para que eu chegasse até aqui.

Agora que cheguei, não tenho coragem de fugir.

17 de fev. de 2009

Bruxas e Fadas

“São bruxas e fadas”

Nos becos morrem mendigos, indigentes, escória.

Nos bares dançam mulheres nuas.

Nas esquinas dançam pessoas vestidas.

Nos escritórios apagam-se as luzes.

Nas casas servem-se jantares.

Saboreia a cidade depois do anoitecer. As cores reais de qualquer uma. A negação da realidade e a crença obsessiva em um qualquer nada que não contradiga o que pensam os burgueses. Sejam burgueses que morrem nas sarjetas ou no interior de jatinhos particulares.

São todos a mesma massa que se consome. Dela se gera. Dela sobrevive. A ela se extingue.

Ao amanhecer, recolhem-se os corpos. Alimentam-se os sobreviventes.

Alimentam-se os corvos, os doutores, padres, policiais, prostitutas, ladrões, estudantes, camelôs e crianças. Diferenciam-se por uma linha tão fácil de ser rompida que todo cuidado para não quebrá-la é pouco. É muito pouco.

O salário é pouco. A comida é pouca. O amor é pouco.

A poesia é tanta que perdeu o sentido.

As vozes são tamanhas que se confundem e se vão sem que seja possível ouvir ou distingui-las uma das outras.

E a cidade se consome pouco a pouco. Alimenta-se do amor urbano, bebe as mortes frias, violentas e calculadas. Crimes que ocupam os jornais. Pornografia infantil. Incesto. Ferozes devoradores de palavras que lêem sem interpretar. Vorazes assaltantes lícitos.

E a cidade enlouquece com drogas comuns. E as pessoas buscam. Correm. Procuram. E não encontram.

E os dias passam sem se diferenciar e as noites acabam e o sol se esconde e a chuva cai e tudo é a mesma coisa. E o empresário propõe um aumento ao funcionário que faz seu trabalho por um salário mínimo, dando graças por ele existir. E a prostituta propõe um programa por seu preço, cuidadosamente definido por seus caprichos. Tudo é a mesma coisa.

Todos são iguais perante as leis. Todos são iguais perante tudo. Todos são iguais perante as classes sociais. Imutáveis e renovadas a cada dia.

A menina se maquia para esconder as feridas abertas na alma. Abusada, humilhada e deprimida, lança seu preço a noite da mesma forma que o fez durante o dia.

Manhã de sol: sentou-se em frente ao patrão, ‘Faço isso, isso e isso’ e pediu um preço.

Noite: debruçou-se na janela do carro estacionado na rua, ‘Faço isso, isso e isso’ e pediu um preço.

Ao voltar pra casa, retira a maquiagem e tenta dormir.

Mas a cidade não permite. Ela cometeu um crime. Crime urbano, banal.

E enquanto a cidade se devora, em sua cama de lençóis vermelhos, ela sonha com bruxas e fadas.

Corro demais

E mesmo quando eu fecho os olhos, você aparece pra mim.

Caminho descalça. Na chuva de fevereiro, enquanto todos estão contentes entoando cantigas e marchinhas , eu ando só. E sigo só porque é o que me convém. Meus passos, antes tão certos, tornaram-se vacilantes. Caminho como quem anda sobre nuvens, sem saber se existe realmente chão sob meus pés. Sem saber se existe alguma coisa realmente. sem saber se existe gente no mundo.

Segredos mudos me acompanham. Fantasmas em pânico. Flores mortas colorem o asfalto como confetes jogados a esmo por uma criança perdida em sua alegria. Nunca brinquei com confetes. Por evitar espelhos, não tenho ninguém para contar meus segredos, para contar uma historia banal. E ainda me dizem que eu falo demais.

Falo demais. Bebo demais. Fumo demais. E corro demais.

Entro no meu carro e corro, corro demais pra tentar te ver.

Mas eu não tenho carro.

E continuo correndo pra te ver.

Tento encontrar o teu olhar. Aquele olhar duro, severo, que se abre em sorriso ao me ver usando cinta-liga. Aquele olhar que me usa e consome, que me despe, possui, ama e mata. Aquele olhar que acompanha o sangue que corre pela minha pele e ensopa o chão num rio pegajoso. Aquele olhar que me acompanha pelo salão enquanto o seu dono parte, vai embora novamente.

E mesmo que você, o fiel dono do olhar, queira parar de me olhar eu sei que não consegue. É impossível porque eu sei o que te faz sair da linha, sei o que te faz perder o foco e só pensar no prazer. E eu sei que eu não sei parar de te olhar.

Não sei desviar meus olhos dos seus. Não quero desviar. Porque pelos gloriosos segundos em que consigo manter um contato visual contigo eu morreria. Porque quando você me olha eu sinto, eu vejo, eu sei. Sinto que você me quer. Vejo seus olhos brilharem de emoção. E sei que você me ama.

E é por isso que eu não posso deixar de te olhar; porque quando eu o fizer não haverá mais sentido correr, não haverá mais sentido sentir, saber ou ver. A única coisa que fará sentido será deixar de respirar e finalizar assim essa espera por efêmeros segundos que nunca virão e pelos quais valeria a pena viver.

10 de fev. de 2009

Bar

Ela não viu nada de especial nele antes daquilo. Nada que prendesse a sua atenção. O fato dele ter cabelos tão longos quanto os seus e dotados de um tom castanho tão claro capturou seu olhar por gloriosos segundos, antes de se perder na memória.

Ela bebia seu dry Martini. Brincava com a cereja, imersa em pensamentos. As vezes, bebia pequenos goles. A bebida ofuscava seus pensamentos e sentidos. Suas mãos de uma brancura tão pálida, tocavam o cristal frio. As luvas jaziam ao lado da taça. Usava o vestido preto que o outro adorava.

Ele bebia sua cerveja. Encostado na parede, observava o ambiente a procura da mulher que levaria pra cama mais tarde. Não a deixaria dormir em seu apartamento caso usasse um perfume doce demais. Os cheiros muito doces davam enjôo. Bebeu o ultimo gole direto da garrafa e foi até o bar comprar mais uma.

Ela estava sentada com os cotovelos apoiados no balcão. O deslize pelas bordas das etiquetas o atraiu mais que as belas pernas que apareciam suavemente sob a barra do vestido. Não eram pernas como as outras, grotescas, saltando pelos cantos das saias; eram sensuais apenas. Mas o fato dela cometer um descuido a tornou meramente humana e essa humanidade a tornou ainda mais bela e assustadora.

Porque até então ele conhecera mulheres ideais. Que tinham explicações e milagrosas cirurgias reparadoras para todo e qualquer defeito. Eram mulheres que estampavam revistas e sobreviviam delas. Não chegavam a ser fúteis, apenas davam valor a coisas com as quais ele não se importava.

Pediu a cerveja e sentou ao lado dela. Queria conversar, mais que isso, queria absorve-la. Bebeu um gole. De repente, a opinião dela importava. Mas a moça se mantinha calada, imersa em seu delírio tão belo e envolvente. Como os outros não percebiam a profundidade daquele ser? Precisava que ela olhasse pra ele e, ao menos, lhe dissesse uma grosseria. Assim poderia voltar para a roda dos amigos sem se sentir tão diferente. Mas ela não fazia o mínimo esforço para encara-lo. Permanecia quieta, distante como mãos muito próximas que não ousam se tocar.

E sem aviso algum, ela parou de brincar com a cereja e bebeu toca a taça. Ele arregalou os olhos. Encarou-a. ‘Se continuar bebendo assim, vai perder a razão’ disse, incapaz de desviar o olhar daquela estranha criatura. ‘E por acaso existe alguma razão nisso tudo a nossa volta?’ a resposta só o fez fascinar ainda mais. ‘Posso comer a sua cereja, moça?’ e ela sorriu enquanto estendia-lhe a taça. Observou-o com ar curioso, ele colocou a fruta toda na boca e apenas mastigou. ‘Algumas mulheres entenderiam essa sua frase como algo completamente diferente.’ Comentou a moça. ‘Eu sei, já levei muitas mulheres pra cama usando essa’. Ela manteve o sorriso e a frieza. ‘E de mim, suponho que só queira a cereja do martini’. O homem abaixou a cabeça ‘Outros tipos de cereja tem me perturbado’.

Foi então que ele prendeu sua atenção. Sentiu-se, subitamente, amiga daquele desconhecido. Sabia que partilhavam da mesma dor; ele também se sentia perturbado. E passaram a conversar sem que as frases ficassem soltas pelo ar. Toda a poesia proveniente de suas falas era absorvida pelo outro. Cada olhar era compreendido. Cada suspiro passou a ser aceitável.

E a musica acabou. As luzes se acenderam enquanto os garçons varriam o chão.

E os dois se sentiram perturbados novamente. Teriam de partir, afastar-se um do outro. Partilharam sentimentos demais para que a despedida fosse natural. Não eram amigos, tão pouco conhecidos. Não sabiam os nomes um do outro, não trocaram telefones. Apenas partilharam da mesma perturbação com os costumes cotidianos.

E sem dizer mais nada. Ela levantou e caminhou porta a fora. Ele a seguiu, precisava ao menos dizer adeus.

E ela o esperava. Imersa na escuridão da madrugada, olhou-o dentro dos olhos.

Como se tivessem combinado, deram-se as costas. Não suportaram ver a si mesmos no outro. Estavam seguros com o resto do mundo, que não os compreendia.

E caminharam caminhos opostos.

E ele não foi forte como ela, virou-se parar ter certeza de que ela não o observava de longe.

E ela foi mais fraca que ele. Após virar a esquina, sentou na calçada e chorou.

8 de fev. de 2009

Espere por mim

Tudo começou com a chuva. Se não estivessem caindo aquelas gotas provenientes das nuvens negras acima, talvez ela não tivesse se abrigado naquela casa. mentira, sempre quisera entrar ali. A chuva foi apenas a desculpa mais viável na hora.

Voltava da festa acompanhada por aquele amigo. Amigo, não. ele era um ex-qualquercoisa que ela não sabia classificar. Ele era... era aquele sorriso enigmático, aqueles olhos profundos... aquele que a fazia perder a vontade de respirar para não desviar os sentidos e aquele que a fazia desejar morrer em sua ausência... ele era aquele pra quem ela escreveu quatorze paginas... ele era quem a deixava livre para desejar os desejos mais loucos, sanguinários, sadomasoquistas, românticos e extravagantes.

Combinaram que ele a acompanharia até sua casa e ela esperaria no portão até que os pais dele chegassem para busca-lo. Começara a chover bem antes disso. Ela tirou os sapatos e pos-se a caminhar descalça pela cidade, rindo das coisas que ele contava ou irritando-o com apelidos absurdos. O plano era tomar banho de chuva na ida pra casa. quem sabe conseguiria convence-lo a entrar, tomar banho (com ela) e trocar de roupa antes de ir pra casa. ela ainda tinha as roupas que ele deixara em sua casa. guardadas cuidadosamente. Carinhosamente esquecidas.

Garoava enquanto caminhavam, tropeçavam, riam, caiam, levantavam. Tomavam cuidado para não se machucar, embora ambos desejassem com todas as forças restantes. E quando começou a chover forte, ela viu a casa em construção surgir na esquina. Correu. Correu como a tempos não corria. Correu como corria para encontra-lo quando ele desaparecia. Correu demais com a desculpa de não estragar o cabelo. Ele riu e perguntou se ela ainda lembrava do banho de chuva que tinham combinado. A moça apenas sorriu.

Entraram na construção. Estava escuro, sombrio, quase macabro. Era um daqueles momentos em que começaria tocar a musica de suspense ou a de romance. Daqueles momentos que ela passaria a vida toda recordando. Olhou nos olhos dele.

O que ele viu foi pouco devido a ausência quase total de luz, mas bastou para prepara-lo para o golpe final. De alguma forma, ele sabia que era o fim. Chovia. Ela estava descalça. Noite. Escuro. Os dois sozinhos.

Eles sabiam que na mente do outro, soavam as mesmas notas. Nenhum poderia explicar. Ela estava pálida, segura, fria. Ele, serio e preocupado. Voce tem certeza, ele perguntou. Não achou que fosse por acaso, ela tinha a voz mais firme que ele esperava.

E chovia forte.

Tomaram alguns comprimidos antes dela entregar a faca a ele. beijaram-se com a superfície fria tocando-lhes o peito. Era aquilo. Sempre fora a perspectiva de morrer que os aproximara. Sempre fora a perspectiva de morrer que os afastara. Sob a esfera da morte, beijaram-se como nunca antes. Entregaram-se um ao outro. Ela esperava que ele pudesse sugar a sua alma pela boca, mata-la enquanto estivesse naquele estado em que nem o seu corpo lhe pertencia. Era dele, apenas. Sempre fora. Ele desejava que ela vacilasse. Não era justo que fizesse com ele. não tinha sido idéia dela.

Mentira, tinha. Ele se arrependia de ter dado credito àquela idéia sanguinária, violenta, apaixonada e cruel proveniente de uma mente tao doentia quanto a dele. Abraçou-a e deixou a faca escorregar de suas mãos. O objeto beijou o chão com calma e paciência. Voce precisa ir pra casa, tentaria convence-la. não adianta me afastar agora, vamos terminar o que nos dispusemos a começar, ela insistiria e ele bem sabia. Então vamos tomar um banho de chuva primeiro, antes que ela argumentasse, puxou-a para fora da casa em construção de modo que ficasse encharcada como ele. voltou a abraça-la

Eu tenho uma condição, ela cederia, enfim. Quero que voce não me deixe mais, não vá mais embora e me deixe sozinha, prometa!, seria mais difícil do que imaginara. Voce sabe que eu..., ele não gostava de coisas daquele genero, apenas se preocupava com ela. Eu sei que eu te amo e se tiver que morrer pra te provar isso que seja, ela fez menção de voltar para apanhar a faca.

No instante que ele levou para segura-la, um relâmpago iluminou o céu. A maquiagem dela, ele pode ver novamente, estava borrada. Não de chuva, de lagrimas. Aquilo o perturbava. Me diga o que aconteceu com voce!, ele gritou. Acontece que eu não sei o que fazer sem ter voce ao meu lado, nem que seja apenas como amigo, acontece que eu te amo como nunca amei ninguem e eu sou exagerada o suficiente pra voce acreditar em tudo que digo, eu sei que voce acredita porque vejo isso nos seus olhos quando seu corpo se fecha pra esconder, não há bandido cuja mascara cubra os olhos. Ela estava inflamada de paixão.

A moça sentia uma pontada de febre apoderar-se dela.

Chovia.

Chovia forte.

Não suportou olhar pra ele. entrou na casa. deixou a faca ainda no chão. Ele seguiu-a, tentaria impedir qualquer atitude precipitada.

Relâmpagos e raios cortavam o céu em fúria.

Não era um filme de terror, nem romântico. Era o filme deles cujo gênero ninguem sabia.

Ela tinha a mão direita por baixo do vestido. Ele observava curioso e assustado, uma interrogação enorme preenchia sua mente. no momento seguinte, a mão dela encontrou a parede. Agora ele podia ver o contorno de um coração.

Mais uma vez, ela levou a mão pra baixo. Ele estava incapacitado de agir. Talvez ela o mantivesse preso com uma corda invisível. A corda do medo. Nunca subestime-o, ela costumava dizer.

Quando olhou novamente para a parede pode ver seu nome dentro do coração que ela desenhara e logo abaixo os dizeres; eu te amo, idiota! Uma declaração de amor proveniente da ultima menstruação que ela teria.

Ele riu.

Ela segurou a arma que tirou da bolsa com firmeza. Antes que ele percebesse, antes que o riso terminasse, atirou. A bala o atingiu diretamente na cabeça. Ele não dissera que a amava. Não a amava, afinal. Por isso, devia morrer.

Chovia.

Chovia bastante quando ela apontou a arma para si e apertou novamente o gatilho.

Terminou com chuva. O proprietário mandou derrubar a casa e vendeu o terreno a um estrangeiro. As famílias nunca chegaram a conversar. Ninguem reconheceu a letra dela. Escrevera em outra língua, a língua do amor louco e unilateral que somente poderia vir daquela mente doentia.

No rosto pálido e sem vida dela, estampava-se a paixão sem limites ou conseqüências. No dele, as três palavras por ele nunca ditas; ‘espere por mim’.

3 de fev. de 2009

Escuta!

Escuta o rugido inaudível da alma em chamas.

 

Fogo!

Terminariam todos no fogo.

Rolariam pela brasa do inferno.

 

Vê o vazio que segue pele casa.

Conhece-a bem.

Entrou, já. Passou pela porta, sentou no sofá da sala.

Puxou-a para que sentasse em seu colo.

Jogou-a contra a parede e a beijou.

Lambeu-lhe os lábios.

Deixou as mãos percorrerem o corpo magro a sua frente.

Magro. Sujo. Infame.

Foi até a cozinha. Abriu a geladeira. Bebeu água.

Subiu as escadas.

Entrou no quarto. ela o aguardava.

Deitada na cama - nua.

Pálida. Magra. Suja. Infame.

Lambeu-a. Penetrou-a. Lambuzou-se.

Desceu as escadas.

Lavou as mãos.

Partiu.

E agora não escuta mais os soluços que correm pela casa com a voz vacilante.

Ela espera.

Teme.

Suporta.

Treme de frio e medo.

Agonia e traição.

Angustia e desespero.

 

Agora não escuta o leve som dos passos incertos que ela dá.

Rumo ao nada.

Sem direção alguma.

Seguros de morrer.

Ela caminha devagar.

Possuída pela angustia de ser.

Tomada pelo tédio enfadonho e perverso da ausência.

Não escuta a própria crueldade.

Não se vê no espelho.

Evita-o.

Evita a todos.

Evita a si própria.

Ignora a maçã que ela oferece.

 

Não é mulher.

É cobra.

Cobra traiçoeira.

É fagulha.

Risco de fogo que arde na pele.

É sangue.

A menstruação que corre pelas coxas machucadas.

É o riso contido.

O poema inacabado.

O gozo interrompido.

 

Escuta!

 

Escuta o grito.

Arde no fogo.

Sente!

Pára!

Respira!

Escuta... escuta...

 

 

Silêncio.

2 de fev. de 2009

Esclarecimento

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações que aqui caleidoscopicamente registro." Clarice Lispector

29 de jan. de 2009

Ah, como eu invejo a rosa morta. Jogada no chão, sem pétala alguma. Pisada. Sem sonhos, sem futuro. Sem perspectiva e acima de tudo, sem a agonizante espera pela morte. Inutilizada de suas ultimas e ainda mais inúteis esferas de vida existentes.

Ah, como eu invejo a musica que termina. A sucessão de gritos e grunhidos, vozes e guinchos que silenciam. Sobra apenas o vazio. As cordas que param de vibrar, baquetas que param de se agitar. Frágeis estruturas que cumprem, nem sempre bem, sua função e se calam sem medo.

Ah, como eu invejo a gota d’água que corre, poluída, pelos rios. Ela, ao menos, é livre para seguir a correnteza ou evaporar, virar nuvem e ser apontada por crianças antes de cair novamente. Se é pra seguir um ciclo, ao menos o da água é o mais comum.

Ah, como eu invejo a lagrima que rola dos olhos. Aquela que brota em meio ao mais profundo desespero. Que trás em si e consigo toda a dor de um momento, de uma vida, já que não deixam de ser a mesma coisa. Aquela que rola por culpa, por medo, solidão, qualquer que seja o motivo, mas que desce pela face e pinga no papel em que se escreve apenas porque não suporta mais a prisão dos olhos. Não suporta mais observar o mundo sem vê-lo e ser parte dele.

Ah, como eu invejo o sangue que escorre dos meus cortes. Seria inútil descreve-los uma vez que nunca alcançarei a perfeição que os envolve. Riscos vermelhos que cortam a pele pálida e mancham a toalha com a qual me enxugo ao sair do banho.

Ah, como eu invejo aquele que se submete sem questionar e vive na ignorante ilusão de que está cumprindo seu papel de cidadão.

Ah, como eu invejo quem tem a coragem de não ir a luta. De não impedir que a única pessoa que o fez sentir amado, algum dia, vá embora. De não escrever mais de dez paginas em meio a horas de solidão implorando um perdão desnecessário e tentando reaver um romance que nunca existiu, nem mesmo no imaginário.

Ah, como eu invejo quem supera as palavras. Quem as usa e descarta por já ter passado da fase de usa-las.

Ah, como eu invejo quem se renova.

Ah, como eu invejo quem é jovem.

Ah, como eu invejo quem aceita.

Ah, como eu invejo quem se ama.

Ah, como eu invejo quem tem amor próprio.

Ah, como, mas como eu invejo quem consegue encostar a cabeça no travesseiro e dormir.

24 de jan. de 2009

Vento na janela

A janela está aberta ansiosa para ver voce passar.

Ela te espera.

Eu te espero.

Espero deitada sobre as cobertas.

 

Nua.

 

A pele branca. Os cabelos negros. O edredom vermelho.

Os olhos fechados, imersos na frágil ilusão.

Oh, sim, eu espero.

Espero pelo vento frio que entrará pela janela com voce cavalgando-o.

Voce pode domar o vento cortante que me faz tremer.

 

Então voce entra em meu quarto enquanto o incenso queima.

Enquanto as velas queimam.

Voce passa pela janela, pousa suavemente no chão.

Desvia dos ursinhos de pelúcia.

Observa.

Voce observa meu peito subir e descer lentamente.

Observa meu semblante adormecido.

Observa minhas curvas.

...

 

Devora-me subitamente.

Voce me toma em seus braços.

Tapa minha boca com uma das mãos para sufocar o grito e parte da respiração.

Me segura com seus braços fortes.

Vira.

Joga.

Torna a virar.

Usa.

Abusa.

Possui.

 

Voce morde meu pescoço e meus seios.

Penetra-me com força e rapidez.

Manda que eu finja voltar a dormir.

É impossível.

E voce goza no meu rosto enquanto eu tento permanecer imóvel.

 

A janela, satisfeita, fecha-se num sussurro.

Voce adormece ao meu lado.

É hora do meu prazer.

21 de jan. de 2009

Sussurros

A voz sussurrada em seu ouvido. Sabia que era a voz dela. Uma voz mandada por ela. Desenvolveram a técnica juntos, ele falava e ela sabia, se alguma forma, ela sempre sabia o que ele estava pensando ou sentindo. Então o feitiço se voltou contra o feiticeiro.

Ela lhe dizia que estava com frio, com dor na virilha no lado direito (ele fechou os olhos), com muito, muito frio e apenas a virilha estava quente. A dor vinha em ondas de calor. Espasmos.

E ele não queria mais ouvir. Não queria mais saber de nada daquilo que o machucava mais que os próprios ferimentos. O que ela fez consigo mesma? mutilara-se pra que? Pra quem? Enquanto ela via o sangue correr, com febre e fome e sono e frio e ele ouvia a voz que chegava aos seus ouvidos nos mesmos sussurros que ela dava quando o sexo esquentava, ele se dava conta da verdade que não queria conhecer.

E ela devia morrer.

E tinha que ser pelas mãos dele.

Mas ela estava errada! Ele não lhe daria as costas. Ele a pegaria no colo enquanto o sangue jorrasse e enquanto ela ainda estivesse quente e enquanto ela ainda estivesse fria. Ela nunca sairia dele e por isso nunca poderia morrer. Ao menos, não durante o período que ele sobrevivesse.

Então ela devia morrer.

E tinha que ser pelas mãos dele.

E ele tinha que morrer.

E tinha que ser pelas mãos dela.

Quem sabe ela tivesse certa. Talvez ele tivesse o sangue frio de cortar aqueles pulsos brancos tão pálidos e continuar seu caminho sozinho. Sempre estivera sozinho e ela viera atrapalhar sua solidão. Viera tira-lo de sua tristeza. Estava certa, portanto!

Ela devia morrer.

E tinha que ser pelas mãos dele.

20 de jan. de 2009

Os gritos do silêncio

A lembrança de tudo aquilo a machucava por dentro. Fazia-a desejar morrer lentamente. Estava, definitivamente, morrendo lentamente. Agozinava. Definhava sob a claridade cinzenta do dia.

E aquela dor. Aquela dor tao grande que gritava com ela todas as noites. Cada dia era pior, mais forte. O grito agonizava com ela, retorcia-se, horrizando a si e a ela. Aquelas imagens, aqueles gritos, aquela voz, o silencio.

O pior de tudo ainda era o silencio. aquela ausencia de voz que a obrigava a preencher o vazio com as futilidades debatidas na televisão ou com algum grito musicado, tao horrendo quanto a sua dor. Aquelas vozes mecanicas!

Não suportava mais o proprio timbre. Era impossivel encarar o reflexo que via no espelho. Quem estava ali? Uma vadia qualquer? Uma puta?

Entao não tivesse feito apaixonar!

Ela sofrera tanto por ele... por quem queria apenas sexo gratis, diversão. Sofrera por quem não merecia, logo, não era digna que sofressem por ela.

Ninguem choraria quando ela parasse de respirar.

Ninguem clamaria seu nome quando estivesse ardendo em chamas, delirando de febre.

Ninguem sentiria falta de vê-la caminhar com suas roupas goticas em meio a multidão.

Quem sentiria sua falta?

Putas existem em qualquer esquina. Ela era apenas mais uma vadia gostosa. Apenas mais uma mulher de micro-saia andando pela rua.

Afinal, ninguem pode se apaixonar por uma mulher presa aquelas curtas horas felizes.

Ninguem é capaz de amar uma mulher que sorri apenas na hora do sexo.

Ninguem, absolutamente ninguem poderia amar uma mulher morta por dentro.

14 de jan. de 2009

Mãos

E ele olhou pra ela.

Olhou e sorriu.

Sorriu como há tempos ela não via.

Ele olhou, sorriu e acenou.

O mesmo aceno de sempre. Tímido, secreto, que escondia uma história e um desejo mutuo. Ao menos da parte dela.

Ele olhou, sorriu, acenou e passou.

Sem tempo para vergonhas, sem tempo parar enganos.

Ela somente reparou a camiseta preta. Como ele ficava lindo vestindo aquele negro de um negrume tão negro que enegrecia a alma de quem olhasse por muito tempo. Aquela cor impenetrável, o luto voluntário, luto pela própria alma que jazia em punição no mármore do inferno.

Ambos iriam abraçar o diabo. Quando chegassem, cada um ao seu tempo, ele diria; Porque demoraram tanto?

Embora a morte tentasse, não conseguia alcança-los.

Ela estava ainda imersa naquele olhar. Aquele instante resumia a existência.

Eram esses segundos, em que ele olhava pra ela, sorria, acenava e partia, que faziam tudo valer a pena.

Haviam ainda alguns minutos ou segundos que a separavam do desespero.

Nesse momento, ele desejava a outra. A puritana gostosinha que usava lingerie branca e corria de corpetes e pulseiras de tachinhas. A dos cabelos lisos. A loira, quem sabe. A dos seios grandes.

Ao menos, com ela, era possível quase quebrar pela cintura fina.

Desejou então que ele o fizesse.

‘ Venha, meu amor, quebre minha cintura. Parta-me ao meio. Quebre minha coluna e minhas costelas. Corte minha pele e assista o sangue correr, manchando suas roupas. Corte minha garganta. Beba meu sangue. Coma minha carne enquanto estou viva. Arranque às dentadas. Lambuze-se com a minha menstruação. Sinta meus nervos se rasgarem em seus dedos enquanto voce os puxa pra fora, rouba-os de mim. Corte minha língua. Morda meus lábios. Faça sangrar minhas coxas até encontrar o osso. Roa meus ossos, não deixe sobrar nada, nem pó.’

Sob aquela perspectiva, acalmou-se.

Não tinha duvidas, morreria pelas mãos dele.

Pelas mãos.

Nunca nos braços.

Ele não ousaria acolhe-la.

Dar carinho era garantir um motivo, outro motivo para ela ficar.

Queria-a longe de si.

Olhares

Queria sangrar ao lado dele. Queria ver-se esvair naquele liquido viscoso que sempre a fascinara tanto olhando para os olhos dele. Aqueles olhos! Os mais profundos que já viu. Impenetráveis. E de batalhas de olhares ela entendia, embora preferisse fugir delas na maioria das vezes.

Mas aqueles olhos a prendiam naquele dezembro. Fazia quase um ano. Esquecera o timbre daquela voz. Esquecera do perfume que a deixava tonta de prazer. Esquecera da língua em seu sexo. Esquecera os cabelos longos dele colados em sua pele suada. Esquecera a dor suave e deliciosa do sexo dele invadindo o seu.

Fora apenas isso...

Continuava sendo apenas isso.

Mas ainda haviam aqueles olhos. Ela jurava que eles eram verdadeiros. Vira quando o olhar dele encontrara o seu durante o sexo e perdeu o fôlego. Deixou-se cair no abismo, estava entregue. Deixou de crer em santos, romanceiros e poetas. Toda a poesia, todo o sentimento do mundo se encontrava nas profundeza daqueles globos de íris castanho clara.

Ainda haviam aqueles olhos. A pele macia, a barba que roçava seu pescoço, os cabelos que se misturavam aos seus...

E agora ele fechava os olhos. Talvez o prazer fosse maior, a entrega menor. Vira-se nele tal como era. A pessoa fraca que não suporta olhar nos olhos por medo de se entregar em demasia.

Os olhos se fecharam para ela.

Os lábios se fecharam, não permitiam mais a entrada da sua língua e mesmo assim, queria morrer ao lado dele. Sonhava com o dia em que ele a convidaria para entrar em seu carro. Usaria aquele espartilho que ele adorava, a cinta-liga com a qual ele delirava e as botas de cano longo e salto agulha. Deixaria os cabelos lisos, longos e soltos. A maquiagem pesada para deixa-la com uma aparência ainda mais morta. Apenas os olhos seriam vivos. Vivos da vontade de encontrar aquele olhar. Vivos até que parassem de interpretar coisa alguma.

Uma vez dentro do carro, seguiriam para o motel mais próximo, afinal, o que era ela? E na curva que o antecede, numa velocidade incrível, ele faria o carro capotar varias vezes antes de bater numa arvore. Morreriam juntos, abraçados num mar de chamas. Nenhum dos dois iria pro céu e sempre souberam disso.

Aqueles olhos estavam abertos, os lábios mostravam um sorriso duro. Chupe mais, meu amor. Deitados lado a lado, não se tocavam. Ela saboreava a doce vontade de um cigarro. Ele, a entorpecência graciosa do sono olhando para o teto do quarto.

Não suportava abraça-lo e não ser abraçada por ele. Aquele homem era um estranho. Não era a pessoa que a prendera no verão, naquelas tardes quentes, ensolaradas. Aquelas tardes em que se permitiam sentir com a alma e não apenas com a pele. Ele mudara e não permitira que ela fizesse o mesmo. Segurava-a naqueles dias para não ter que recorrer a outra pessoa. Sabia que ela voltaria. Sempre voltava.

Ele morreria com ela? Acreditava que sim. talvez a tentação da morte ficasse mais clara ao vê-la abrir os próprios pulsos com o olhar sedento de atenção. Não tentaria voltar atrás caso os olhos dele se abrissem para ela novamente, ao contrario, sorriria agradecida por um ultimo momento de prazer.

Sabia que se fosse por primeiro, ele a encontraria no inferno sem muita demora. Já tinha perdido um ano, mais um ou dois não iria mata-la. já estaria morta, afinal. Iriam passear de mãos dadas pela estrada, iriam se beijar sob um chão de giz e quando atravessassem os portões do inferno as almas em punição os conduziriam à cama redonda que os estaria esperando. Amariam-se então.

Manteriam os olhos abertos, mas não teriam mais coração para sentir.

Ao menos, enfim morta, poderia vê-lo amar alguém sem que sua presença o atormentasse.

Morrer era sair da vida dele, deixa-lo livre para ser feliz.