5 de fev. de 2011

Insonia

As palavras estavam mudas. Nenhuma poderia efetivamente dizer qualquer coisa que fizesse sentido. Nem mesmo Clarice. Eram nesses dias que ela não conseguia dormir.

Via a noite passar lentamente sem conseguir fechar os olhos. Fazer isso seria se entregar e ela já estava entregue a outras coisas. Presa no sono vigilante que dorme sem dormir, em que qualquer movimento feito pelo bebe que descansa ao seu lado é capaz de desperta-la. não valia a pena dormir ainda. Poderia dormir aproveitando as sonecas do bebe ao longo do dia. Os dias eram muito mais claros. Claros até demais.

Durante o dia, estava exposta. Os raios solares daquele verão infernal a consumiam por fora, enquanto os outros a consumiam por dentro. Uma palavra, uma atitude pequena se tornaram capazes de fazer um corte profundo em sua alma. Machucada, a imagem refletida no espelho era de uma figura medonha, que só ela parecia poder enxergar.

Seus cabelos, antes longos e vivos, agora estavam curtos e negros como a morte. Suas unhas já não chamavam atenção. Era uma velha presa num corpo estranho. Uma velha sem dentes cujas rugas de uma vida amarga lhe cobriam a face. Seus olhos mostravam tristeza e cansaço. As roupas, velhas e surradas, não ressaltavam nenhuma curva daquele corpo magro que só sabia perder mais e mais peso. Suja de poeira da estrada, das lagrimas que já não caiam, do sangue que perdia a cada frágil decepção. Estava magra, um estranho saco de ossos.

Apenas o bebe parecia capaz de lhe dar alegria. A razão da sua vida, uma pequena luz capaz de retirar a mãe do abismo com um sorriso. Aquele sorriso limpo, de quem não tem culpa ou ciência, apenas sorri porque é feliz. O anjinho podia ajudar e ajudava a todo momento. Parecia saber exatamente o que fazer para deixar os outros felizes, especialmente a mãe, tão triste.

A mãe que tropeçava nas esquinas sem ressaca. A mãe que achava graça em resvalar grotescamente pelas bordas das etiquetas colocando os cotovelos na mesa enquanto chupa a cereja do Dry Martini. A mesma mãe adepta ao glamour decadente, com seu esmalte descascando, salto quebrado, sentada no meio fio para tomar uma cerveja. Socialite do baixo clero, como se definia ironicamente. Uma mãe que se sentia como o próprio Álvaro de Campos, supondo que ele exista, em seu genial Poema em Linha Reta. Aquela mãe, que conseguia sorrir ao olhar para a filha, era a mesma que desejava apenas que o dia terminasse logo para poder ninar a própria insônia.

3 de mai. de 2009

Deles...

Quem poderia imaginar?

Quem acreditaria caso alguém falasse sobre a mudança dela?

Aquela menina que sempre foi a pegadora, que sempre foi extrema, agora apaixonada, agora presa a um homem só... aquela mesma que nunca saía de uma festa sem ao menos beijar alguém, aquela que tinha fantasias absurdas e extravagantes, aquela que não se entregava a ninguem agora estava ali, deitada na cama, no escuro, recordando...

Relembrando as semanas anteriores, alguns dias apenas. Aqueles dias pelos quais valia a pena viver a semana toda, seja para espera-los, seja para recorda-los.

Mas o travesseiro que usava agora não tinha mais o cheiro dele. Não tinha mais o perfume da Natura que ela esquecera o nome. Não cheirava mais ao desodorante 212 man. Não cheirava mais ao sexo da noite anterior. Talvez fosse isso... mas não somente.

O que a atraíra nele? Não sabia ao certo. Quem sabe tivesse gostado da aparência dele, no inicio. Lembrava vagamente de querer pedir um cigarro dele, mas a vergonha a impedira. Era tímida, afinal. E ele só descobrira tempos depois. Lembrava dele tirando a garrafa de cerveja de suas mãos frias, ora pelo frezzer, ora naturalmente. Mas fora mais que isso.

Olhando pela janela, para o lugar exato em que teve o primeiro contato de âmbito sexual com ele, percebia que os confetes já não caiam mais. O carnaval se fora há dois meses. Dois meses se passaram sem que dormisse com outra pessoa. Era um recorde pra ela. Um recorde do qual, ao contrario dos outros, se orgulhava. E embora os confetes não mais caíssem, os últimos grudaram em sua pele suada.

A pele suada que adorava ter embaixo do seu corpo. A pele quente do mesmo dono cujo sexo invadia o seu. A pele suave do mesmo dono que dormia ao seu lado ou a abraçava em longas horas de insônia. A pele marcada por unhas, mordidas e chupões...

Quando olhou para o lado, quase pode vê-lo. Foi como quando acordou de madrugada e não acreditou que ele estava dormindo ao seu lado, numa intimidade que nunca tivera igual. Pensara estar sonhando. Estava, no presente, mas não no contexto.

Analisando o ultimo, percebia que desde o domingo em que ele fora embora da festa, o mesmo domingo em que a levara pra casa depois de estacionar o carro numa rua paralela para saciar a sede de prazer de ambos, desde tal dia pensava nele. Entrara em casa com o mesmo sorriso contido que tinha nos lábios cada vez que ouvia o nome dele. Andrei.... Andrei... a musicalidade do nome seguia a musicalidade do toque, do andar, do abrir a porta do elevador e acender a luz do corredor e os passos arrastados e o sorriso brincando com os lábios e o corpo dela de encontro da porta e o cumprimento e as mãos dele tocando o rosto dela e as mãos dela tocando a nuca e o pescoço dele e o beijo e a mochila sendo deixada sobre a mesa e a porta sendo trancada...

Tudo isso fazia falta agora. Parecia distante. Parecia surreal.

Diante do escuro, do quarto que era seu mas no qual não se sentia em casa, diante das perspectivas frustradas que as paredes guardavam em segredo, diante da janela que gritava enquanto apontava para a rua deserta, diante das musicas que ouvira com ele, diante das lembranças, deixava as lagrimas rolarem pelo rosto. Lagrimas estas carregadas de todo sal que poderia eliminar, porque devia estar doce pra ele. o mais doce possível para quem sabe ouvi-lo repetir ‘Que querida que você está hoje’.

Agora só queria lembrar. Por isso não podia se explicar, por isso não podia conversar ou elaborar qualquer pensamento lógico. Porque a lógica estragaria a magia do momento que viveram juntos. Qualquer palavra mancharia o momento em que ele disse ‘nós dois’, deitado ao lado dela, abraçava-a enquanto ela assistia seu seriado favorito e ele, por sua vez, já deveria estar no trabalho.

E o Andrei que conhecera no carnaval, cujo sexo fora o melhor que já provara, mudara. O sexo com ele mudara, as palavras dele mudaram. E naquele dia ele realmente quis aconselha-la, coisa que ela não pôde deixar. Não suportaria ouvi-lo concordar com os pais, os mesmos pais que a chamavam de vadia e drogada. Era apenas uma criança que usava maquiagem e alisava os cabelos.

Uma criança que ele estava conhecendo, talvez até gostando...não, não talvez, era fato. Ele dissera. E dissera com um dizer embaçado, torcido, como se não quisesse ser pronunciado e como se a pronuncia não pudesse alcançar a magnitude do sentimento. Nenhuma palavra conseguiria. E ela acreditava.

Acreditava da mesma forma que acreditou quando ele dissera que estava a dez dias sem fumar, como acreditou que ele achava que ela era vegetariana. Enganara-se. Depois descobriu como faze-la arrepiar. Descobriu o prazer de dar prazer a ela. Descobriu até mesmo que ela estava a um passo de ama-lo. E mais ainda, descobriu que ela, em sua inocência e incoerência, não esperava que ele retribuísse pronta ou proporcionalmente. Ela ficaria feliz em saber apenas que ele pensara nela, ou que esperara pela ligação dela que nunca chegou e não fez valer o dia.

E agora, aquela menina que ninguem acreditava ser capaz de se amarrar, lembrava das frases trocadas por eles durante o sexo, depois do sexo, das conversas... lembrava dele jogando água nela por cima do boxe, molhando todo o banheiro... lembrava de acordar sorrindo por vê-lo espreguiçar ao seu lado e abraça-lo antes de preparar o café da manhã. Mas lembrava, sobretudo, da alegria que se instalava em seu peito de gelo quando ele estava ao seu lado.

Ninguem acreditava, nem mesmo o espelho. E era uma descrença bem vinda, porque aqueles eram momentos dela...deles.

17 de abr. de 2009

Caneta que falha

Ela estava deitada no sofá da sala. Era um desses sofás que se abrem parar formar uma cama de casal perfeita não fosse o vão entre as almofadas. Sobre ela, um edredom vermelho. Vermelho como seu celular, como sua antiga pasta, como seus cabelos. Vermelho como a paixão que lhe inflamava as veias. Assistia um filme qualquer que passava na televisão (sem saber afirmar se era dublado ou legendado) enquanto chorava baixinho. E o fazia por medo que o filme se apiedasse dela e desviasse o próprio rumo.

Ela perdera o rumo. Perdera-o juntamente com o fluxo criativo enquanto preenchia as linhas da carta endereçada a ele. perdera tudo quando a caneta começou a falhar. A tinta não era mais a mesma, as palavras ficavam pela metade, as letras saiam falsas. E nada era falso!

Escrevia sobre o dia em que se conheceram, sobre a vontade de conhece-lo antes, sobre a vontade igualmente grande de não o ter conhecido antes. Escrevia sobre a noite fria em que sua pele arrepiava sob o micro short que usava enquanto conversavam no sereno, sentados em cadeiras de plástico na areia em meio a festa de carnaval bebendo da cerveja, já quente,  que ainda restava nos copos. Escrevia sobre a falta de memória que a impedia de saber a sucessão dos fatos daquela noite, não sabia como o beijou (ou foi ele quem o fez?), não sabia como chegara em casa. As sincronias e diacronias eram importantes para ela, seria historiadora, afinal.

Escrevia sobre a ausência dele na festa do dia seguinte, ainda era carnaval e, como em outros anos, teria histórias para contar. Escrevia sobre como tudo parecia sem graça, sobre como ele, de alguma forma misteriosa, parecia aquece-la em sua ausência. Escrevia sobre como aquela noite fora regada apenas a água, não queria beber, cerveja a fazia perder a razão e a razão era o que o fazia continuar em sua mente exausta de pensar.

Escrevia sobre como o dia de domingo fora surreal. A priori não queria sair de casa. O medo de esperar por ele e não encontra-lo fazia parecer mais amigável permanecer em casa. mesmo assim, saiu. Foi ao clube, maquiou o cunhado para que ele jogasse futebol e permaneceu no bar, servindo cerveja. Novamente não se recordava de quando e como ele chegou, sabia apenas que ele não a deixava servi-lo, tirava a garrafa de suas mãos e sorria. Sabia apenas que de repente ele estava dentro do bar, com ela, e a beijou. Era impossível recordar os diálogos. Desnecessário também. O que valia lembrar era de se sentar no colo dele, fumar do mesmo cigarro que ele e levantar diversas vezes para servir os outros. E então veio a noite, o descanso de quem está só. Vieram os seguranças pedir que se retirassem do clube. Veio a irmã pedir para que ele a levasse pra casa. ela tinha noção do que pedia? Talvez tivesse.

Escrevia sobre como ficara com vergonha ao entrar no carro dele com mais um casal que deixariam em casa também. Mas mais que isso, escrevia sobre como ficara aliviada ao deixar o ultimo passageiro em casa e ser abraçada por ele enquanto o mesmo dirigia subindo os morros da cidade em direção a casa dela. Disso ela lembrava. Lembrava de pararem o carro a poucos metros da casa dela e verem que os pais da moça a aguardavam do lado de fora. Lembrava de saírem com o carro a procura de um lugar deserto para uma despedida apropriada. E encontraram! E ele dissera ‘deixa eu te abraçar bem forte’ e os abraços e os beijos e o sexo, tudo foi extremo pra ela. O extremo do prazer.

Escrevia sobre como os pais a encararam quando chegara em casa. Sobre como comera correndo para poder chegar a tempo de entregar as coisas que prometera levar para a irmã, sobre como desviara o assunto quando os pais perguntaram com quem viera. Sobre como agora torcia para que eles não ligassem o nome a pessoa. Escrevia sobre como esperara por ele e a hora não passava e passava rápido demais porque ele iria embora a meia noite. E sobre como se iluminou ao vê-lo, mesmo cercado pelas irmãs e como ele a ajudara a fugir de outro homem com o qual ela não queria ficar. Recordava-se de quando fora expulsa do bar por um amigo e fora procura-lo para não ficar sozinha e desta vez ele sabia como provoca-la, sabia que ela não desviaria do soco quando a oportunidade surgisse, por isso dissera ‘vamos agora então’ e sorrindo, ela concordou ‘só se for agora’. E entraram no carro novamente, desta vez sozinhos.

Ela ria sozinha ao recordar que o copo dele fora esquecido sobre o carro e caíra quando subiram o morro. Não sabia onde ele a levaria, sabia que seria uma rua escura, deserta, mas assustou-se quando ele entrou em um bairro chique. Imaginou como seria se alguém saísse de casa e os visse. E enquanto imaginava, ele acariciava suas pernas, nuas devido a mini saia. ‘você podia por um piercing no umbigo’, ‘não!’. E ele estacionou de repente, desligou o carro, o rádio, os faróis e pôs-se a beija-la sem demora, ardendo de desejo. Ao corresponde-lo, sentia-se pouco a pouco entregue. O extremo parecia persegui-la aquele dia. A linha tão tênue entre dor e prazer tornara-se curva, a curva perfeita para faze-la delirar, ir ao céu e ao inferno e desejar uni-los numa explosão de gozo e dor. As marcas daquele sexo, como a dor nas costas depois de bater por vezes sucessivas no volante, a acompanhariam por dias. E subitamente, ele foi embora. Depois de entregar a calcinha dela que misteriosamente fora parar embaixo do banco dele e beija-la ainda dentro do carro, ela desceu e entrou novamente no clube para terminar a festa que já estava encerrada, sem que nenhum dos dois soubesse.

E depois veio a espera. A espera pela caneta que voltasse a funcionar. A espera para escrever sobre como os dias depois de domingo tardaram a passar, sobre como a sua mudança pareceu infinita e sobre como desejou matar os pais quando eles decidiram passar um dia a mais com ela, atrapalhando seus planos.

Parecia impossível agora expressar como ela ficou feliz quando ele disse que iria vê-la no dia seguinte para que pudessem planejar um novo encontro. Ou como ele estava lindo ao sair do elevador segurando uma Heinekein pela metade e sorrindo pra ela que, nervosa, não sabia como agir. De tão tola que era, esquecera-se de abrir o sofá para que deitassem mais confortavelmente. E naquele dia estava menstruada e mesmo assim eles se divertiram. Adormeceram abraçados sem pudor, sem medo.

E nas outras vezes as coisas só melhoraram. Melhoraram quando ela se deixou possuir por ele de corpo e alma. Melhoraram quando passaram a confiar um no outro e a conversar e não somente falar.

E agora a caneta, falha, a impedia de ordenar seus pensamentos e emoções. Entregue ao choro, como quando ele não respondera suas ligações e mensagens, recordava dele dormindo em seu colo as cinco e meia da tarde nos dias em que ele decidia passar o horário de almoço com ela. Recordava dele chegando para vê-la depois que ela lhe pediu um ombro para chorar, vestia preto, e ele rira quando ela pediu um beijo decente (‘venha aqui então’), e ele a abraçara quando ela se virou depois que o despertador dele tocou, a abraçara e beijara suas costas e seus ombros, tal como ela fazia, e brincara com seus cabelos e rira quando ela pediu ‘você quer que eu acorde?’, ‘não, pode dormir’.

E mesmo com a caneta falhando, mesmo com as dores que acumulara no corpo, mesmo com o perfume dele ainda presente no travesseiro, ainda era possível recordar os sorrisos, os abraços, as frases, as provocações, tudo que tornara aquele relacionamento, tão infante, tão especial pra ela.

‘Desculpe se eu exagero nas coisas’. ‘Tá desculpada’.  

21 de mar. de 2009

Homossexual

E das coisas que eu não entendo talvez a maior seja a desconfiança. Não venham me dizer que é proteção. Não! quem ama de verdade deixa as coisas livres. Quem ama preserva e não prende.

Mas por trás da desconfiança existe inveja e rancor. Inveja por que a grama do vizinho sempre parece mais verde. E as pessoas privam e humilham as outras porque o ser miserável precisa humilhar o seu igual para se sentir superior. Só que humilhação tem limites.

Essa historia de ‘viva a diversidade’ tem um discurso lindo. Mas é apenas discurso. Quando as pessoas se deparam com um homossexual na família, por exemplo, fazem de tudo pra esconder, oprimir. Como se fosse um vírus, uma doença que pudesse ser exterminada na prisão domiciliar. Não se pode falar, não se pode discutir. Ponto de vista já não existe. Nem amor.

Porque parece que o amor cessa com a descoberta. Parece que o amor de pai e mãe se encolhe mediante a vergonha. Vergonha da felicidade alheia.

Já que pra ser homossexual no Brasil é preciso se mudar pros Estado Unidos. Não é o primeiro caso conhecido e nem será o ultimo. Ao menos lá, longe do preconceito da própria família, o preconceito da sociedade não parece afetar tanto. Já não ofende tanto quando as palavras não vem da boca das irmãs, dos irmãos, dos pais, dos tios... Parece não ter mais tanto sentido e em certas situações torna-se até humorado. Mas quando a ofensa vem dos seus, é impossível permanecer imóvel.

É como ouvir da boca de sua mãe; Você é uma vadia.

É impossível de esquecer ou perdoar. A mágoa se torna eterna e o vírus, seja qual for, anseia mais ainda a liberdade. O opção feita reverbera pelas veias na tentativa de rompe-las definitivamente.

Morrer seria uma alternativa.

Morrer pela causa.

Morrer pela liberdade.

Morrer pra poder, enfim, voar.

Fugir

E quando penso em fugir, já não tenho mais coragem. Algo me prende aqui. Algo que foge às teorias, foge a qualquer explicação. A diferença entre mim e as outras pessoas é que não sou capaz de sentir verdadeiramente saudade das coisas. Porque saudade se sente quando as coisas terminaram, quando as pessoas vão definitivamente embora, e as coisas e as pessoas continuam em mim, pulsam nas minhas veias aumentando a pressão, ansiando por explodir comigo e consigo.

As memórias na minha agenda ainda me consomem, tal como o cheiro de cigarro e maconha que ficou no ar, tal como a cama desarrumada e vazia, os travesseiros organizados cuidadosamente, a xícara imóvel sobre a mesa e o isqueiro em minhas mãos. A eterna lembrança das palavras que soaram quase como um ‘eu te amo’, mas que na verdade foram ‘eu poderia ter te deixado um beck pronto, caso você queira fumar depois’. E por mais que digam que é errado, que é loucura ou que é coisa de puta, prossigo até que meu coração decida parar de bater.

Porque ir pro inferno, por ir pro inferno, assinei minha sentença com floreios há anos. Dormi com ele e com ele e com ele... Bebi demais, fumei demais. Afinal, humana é o que eu sou. Anjo, deixei de ser há tempos, apenas a máscara permaneceu. A fantasia imaculada de anjo calmo, protetor e preocupado com os outros.

Mas a medida que a ausência, nunca saudade, foi aumentando progressivamente, meu mundo foi desmoronando. Em meio a sons, cores (como a luz da sala, que subitamente ficou verde), emoções, lágrimas, gemidos de prazer e dor, puxões de cabelo, palavras soltas me perseguiam. Fantasmas em pânico. Urgentes de atenção, as palavras eram nada mais que fragmentos de frases nunca ditas, de sentimentos nunca sentidos, ilusões nunca vividas em plenitude.

Tal ausência me provoca desejos, arranca sensações. Desejos de álcool, sexo, drogas, rock n’roll, café, chocolate, livros. A ausência me ensinou a compreender meu passado, porque não existe história sem essa concepção. Me ensinou a não querer mudar o que já aconteceu, me ensinou a aceitar apenas. Esses ensinamentos foram essenciais para que eu chegasse até aqui.

Agora que cheguei, não tenho coragem de fugir.

17 de fev. de 2009

Bruxas e Fadas

“São bruxas e fadas”

Nos becos morrem mendigos, indigentes, escória.

Nos bares dançam mulheres nuas.

Nas esquinas dançam pessoas vestidas.

Nos escritórios apagam-se as luzes.

Nas casas servem-se jantares.

Saboreia a cidade depois do anoitecer. As cores reais de qualquer uma. A negação da realidade e a crença obsessiva em um qualquer nada que não contradiga o que pensam os burgueses. Sejam burgueses que morrem nas sarjetas ou no interior de jatinhos particulares.

São todos a mesma massa que se consome. Dela se gera. Dela sobrevive. A ela se extingue.

Ao amanhecer, recolhem-se os corpos. Alimentam-se os sobreviventes.

Alimentam-se os corvos, os doutores, padres, policiais, prostitutas, ladrões, estudantes, camelôs e crianças. Diferenciam-se por uma linha tão fácil de ser rompida que todo cuidado para não quebrá-la é pouco. É muito pouco.

O salário é pouco. A comida é pouca. O amor é pouco.

A poesia é tanta que perdeu o sentido.

As vozes são tamanhas que se confundem e se vão sem que seja possível ouvir ou distingui-las uma das outras.

E a cidade se consome pouco a pouco. Alimenta-se do amor urbano, bebe as mortes frias, violentas e calculadas. Crimes que ocupam os jornais. Pornografia infantil. Incesto. Ferozes devoradores de palavras que lêem sem interpretar. Vorazes assaltantes lícitos.

E a cidade enlouquece com drogas comuns. E as pessoas buscam. Correm. Procuram. E não encontram.

E os dias passam sem se diferenciar e as noites acabam e o sol se esconde e a chuva cai e tudo é a mesma coisa. E o empresário propõe um aumento ao funcionário que faz seu trabalho por um salário mínimo, dando graças por ele existir. E a prostituta propõe um programa por seu preço, cuidadosamente definido por seus caprichos. Tudo é a mesma coisa.

Todos são iguais perante as leis. Todos são iguais perante tudo. Todos são iguais perante as classes sociais. Imutáveis e renovadas a cada dia.

A menina se maquia para esconder as feridas abertas na alma. Abusada, humilhada e deprimida, lança seu preço a noite da mesma forma que o fez durante o dia.

Manhã de sol: sentou-se em frente ao patrão, ‘Faço isso, isso e isso’ e pediu um preço.

Noite: debruçou-se na janela do carro estacionado na rua, ‘Faço isso, isso e isso’ e pediu um preço.

Ao voltar pra casa, retira a maquiagem e tenta dormir.

Mas a cidade não permite. Ela cometeu um crime. Crime urbano, banal.

E enquanto a cidade se devora, em sua cama de lençóis vermelhos, ela sonha com bruxas e fadas.

Corro demais

E mesmo quando eu fecho os olhos, você aparece pra mim.

Caminho descalça. Na chuva de fevereiro, enquanto todos estão contentes entoando cantigas e marchinhas , eu ando só. E sigo só porque é o que me convém. Meus passos, antes tão certos, tornaram-se vacilantes. Caminho como quem anda sobre nuvens, sem saber se existe realmente chão sob meus pés. Sem saber se existe alguma coisa realmente. sem saber se existe gente no mundo.

Segredos mudos me acompanham. Fantasmas em pânico. Flores mortas colorem o asfalto como confetes jogados a esmo por uma criança perdida em sua alegria. Nunca brinquei com confetes. Por evitar espelhos, não tenho ninguém para contar meus segredos, para contar uma historia banal. E ainda me dizem que eu falo demais.

Falo demais. Bebo demais. Fumo demais. E corro demais.

Entro no meu carro e corro, corro demais pra tentar te ver.

Mas eu não tenho carro.

E continuo correndo pra te ver.

Tento encontrar o teu olhar. Aquele olhar duro, severo, que se abre em sorriso ao me ver usando cinta-liga. Aquele olhar que me usa e consome, que me despe, possui, ama e mata. Aquele olhar que acompanha o sangue que corre pela minha pele e ensopa o chão num rio pegajoso. Aquele olhar que me acompanha pelo salão enquanto o seu dono parte, vai embora novamente.

E mesmo que você, o fiel dono do olhar, queira parar de me olhar eu sei que não consegue. É impossível porque eu sei o que te faz sair da linha, sei o que te faz perder o foco e só pensar no prazer. E eu sei que eu não sei parar de te olhar.

Não sei desviar meus olhos dos seus. Não quero desviar. Porque pelos gloriosos segundos em que consigo manter um contato visual contigo eu morreria. Porque quando você me olha eu sinto, eu vejo, eu sei. Sinto que você me quer. Vejo seus olhos brilharem de emoção. E sei que você me ama.

E é por isso que eu não posso deixar de te olhar; porque quando eu o fizer não haverá mais sentido correr, não haverá mais sentido sentir, saber ou ver. A única coisa que fará sentido será deixar de respirar e finalizar assim essa espera por efêmeros segundos que nunca virão e pelos quais valeria a pena viver.