17 de fev. de 2009

Bruxas e Fadas

“São bruxas e fadas”

Nos becos morrem mendigos, indigentes, escória.

Nos bares dançam mulheres nuas.

Nas esquinas dançam pessoas vestidas.

Nos escritórios apagam-se as luzes.

Nas casas servem-se jantares.

Saboreia a cidade depois do anoitecer. As cores reais de qualquer uma. A negação da realidade e a crença obsessiva em um qualquer nada que não contradiga o que pensam os burgueses. Sejam burgueses que morrem nas sarjetas ou no interior de jatinhos particulares.

São todos a mesma massa que se consome. Dela se gera. Dela sobrevive. A ela se extingue.

Ao amanhecer, recolhem-se os corpos. Alimentam-se os sobreviventes.

Alimentam-se os corvos, os doutores, padres, policiais, prostitutas, ladrões, estudantes, camelôs e crianças. Diferenciam-se por uma linha tão fácil de ser rompida que todo cuidado para não quebrá-la é pouco. É muito pouco.

O salário é pouco. A comida é pouca. O amor é pouco.

A poesia é tanta que perdeu o sentido.

As vozes são tamanhas que se confundem e se vão sem que seja possível ouvir ou distingui-las uma das outras.

E a cidade se consome pouco a pouco. Alimenta-se do amor urbano, bebe as mortes frias, violentas e calculadas. Crimes que ocupam os jornais. Pornografia infantil. Incesto. Ferozes devoradores de palavras que lêem sem interpretar. Vorazes assaltantes lícitos.

E a cidade enlouquece com drogas comuns. E as pessoas buscam. Correm. Procuram. E não encontram.

E os dias passam sem se diferenciar e as noites acabam e o sol se esconde e a chuva cai e tudo é a mesma coisa. E o empresário propõe um aumento ao funcionário que faz seu trabalho por um salário mínimo, dando graças por ele existir. E a prostituta propõe um programa por seu preço, cuidadosamente definido por seus caprichos. Tudo é a mesma coisa.

Todos são iguais perante as leis. Todos são iguais perante tudo. Todos são iguais perante as classes sociais. Imutáveis e renovadas a cada dia.

A menina se maquia para esconder as feridas abertas na alma. Abusada, humilhada e deprimida, lança seu preço a noite da mesma forma que o fez durante o dia.

Manhã de sol: sentou-se em frente ao patrão, ‘Faço isso, isso e isso’ e pediu um preço.

Noite: debruçou-se na janela do carro estacionado na rua, ‘Faço isso, isso e isso’ e pediu um preço.

Ao voltar pra casa, retira a maquiagem e tenta dormir.

Mas a cidade não permite. Ela cometeu um crime. Crime urbano, banal.

E enquanto a cidade se devora, em sua cama de lençóis vermelhos, ela sonha com bruxas e fadas.

Corro demais

E mesmo quando eu fecho os olhos, você aparece pra mim.

Caminho descalça. Na chuva de fevereiro, enquanto todos estão contentes entoando cantigas e marchinhas , eu ando só. E sigo só porque é o que me convém. Meus passos, antes tão certos, tornaram-se vacilantes. Caminho como quem anda sobre nuvens, sem saber se existe realmente chão sob meus pés. Sem saber se existe alguma coisa realmente. sem saber se existe gente no mundo.

Segredos mudos me acompanham. Fantasmas em pânico. Flores mortas colorem o asfalto como confetes jogados a esmo por uma criança perdida em sua alegria. Nunca brinquei com confetes. Por evitar espelhos, não tenho ninguém para contar meus segredos, para contar uma historia banal. E ainda me dizem que eu falo demais.

Falo demais. Bebo demais. Fumo demais. E corro demais.

Entro no meu carro e corro, corro demais pra tentar te ver.

Mas eu não tenho carro.

E continuo correndo pra te ver.

Tento encontrar o teu olhar. Aquele olhar duro, severo, que se abre em sorriso ao me ver usando cinta-liga. Aquele olhar que me usa e consome, que me despe, possui, ama e mata. Aquele olhar que acompanha o sangue que corre pela minha pele e ensopa o chão num rio pegajoso. Aquele olhar que me acompanha pelo salão enquanto o seu dono parte, vai embora novamente.

E mesmo que você, o fiel dono do olhar, queira parar de me olhar eu sei que não consegue. É impossível porque eu sei o que te faz sair da linha, sei o que te faz perder o foco e só pensar no prazer. E eu sei que eu não sei parar de te olhar.

Não sei desviar meus olhos dos seus. Não quero desviar. Porque pelos gloriosos segundos em que consigo manter um contato visual contigo eu morreria. Porque quando você me olha eu sinto, eu vejo, eu sei. Sinto que você me quer. Vejo seus olhos brilharem de emoção. E sei que você me ama.

E é por isso que eu não posso deixar de te olhar; porque quando eu o fizer não haverá mais sentido correr, não haverá mais sentido sentir, saber ou ver. A única coisa que fará sentido será deixar de respirar e finalizar assim essa espera por efêmeros segundos que nunca virão e pelos quais valeria a pena viver.

10 de fev. de 2009

Bar

Ela não viu nada de especial nele antes daquilo. Nada que prendesse a sua atenção. O fato dele ter cabelos tão longos quanto os seus e dotados de um tom castanho tão claro capturou seu olhar por gloriosos segundos, antes de se perder na memória.

Ela bebia seu dry Martini. Brincava com a cereja, imersa em pensamentos. As vezes, bebia pequenos goles. A bebida ofuscava seus pensamentos e sentidos. Suas mãos de uma brancura tão pálida, tocavam o cristal frio. As luvas jaziam ao lado da taça. Usava o vestido preto que o outro adorava.

Ele bebia sua cerveja. Encostado na parede, observava o ambiente a procura da mulher que levaria pra cama mais tarde. Não a deixaria dormir em seu apartamento caso usasse um perfume doce demais. Os cheiros muito doces davam enjôo. Bebeu o ultimo gole direto da garrafa e foi até o bar comprar mais uma.

Ela estava sentada com os cotovelos apoiados no balcão. O deslize pelas bordas das etiquetas o atraiu mais que as belas pernas que apareciam suavemente sob a barra do vestido. Não eram pernas como as outras, grotescas, saltando pelos cantos das saias; eram sensuais apenas. Mas o fato dela cometer um descuido a tornou meramente humana e essa humanidade a tornou ainda mais bela e assustadora.

Porque até então ele conhecera mulheres ideais. Que tinham explicações e milagrosas cirurgias reparadoras para todo e qualquer defeito. Eram mulheres que estampavam revistas e sobreviviam delas. Não chegavam a ser fúteis, apenas davam valor a coisas com as quais ele não se importava.

Pediu a cerveja e sentou ao lado dela. Queria conversar, mais que isso, queria absorve-la. Bebeu um gole. De repente, a opinião dela importava. Mas a moça se mantinha calada, imersa em seu delírio tão belo e envolvente. Como os outros não percebiam a profundidade daquele ser? Precisava que ela olhasse pra ele e, ao menos, lhe dissesse uma grosseria. Assim poderia voltar para a roda dos amigos sem se sentir tão diferente. Mas ela não fazia o mínimo esforço para encara-lo. Permanecia quieta, distante como mãos muito próximas que não ousam se tocar.

E sem aviso algum, ela parou de brincar com a cereja e bebeu toca a taça. Ele arregalou os olhos. Encarou-a. ‘Se continuar bebendo assim, vai perder a razão’ disse, incapaz de desviar o olhar daquela estranha criatura. ‘E por acaso existe alguma razão nisso tudo a nossa volta?’ a resposta só o fez fascinar ainda mais. ‘Posso comer a sua cereja, moça?’ e ela sorriu enquanto estendia-lhe a taça. Observou-o com ar curioso, ele colocou a fruta toda na boca e apenas mastigou. ‘Algumas mulheres entenderiam essa sua frase como algo completamente diferente.’ Comentou a moça. ‘Eu sei, já levei muitas mulheres pra cama usando essa’. Ela manteve o sorriso e a frieza. ‘E de mim, suponho que só queira a cereja do martini’. O homem abaixou a cabeça ‘Outros tipos de cereja tem me perturbado’.

Foi então que ele prendeu sua atenção. Sentiu-se, subitamente, amiga daquele desconhecido. Sabia que partilhavam da mesma dor; ele também se sentia perturbado. E passaram a conversar sem que as frases ficassem soltas pelo ar. Toda a poesia proveniente de suas falas era absorvida pelo outro. Cada olhar era compreendido. Cada suspiro passou a ser aceitável.

E a musica acabou. As luzes se acenderam enquanto os garçons varriam o chão.

E os dois se sentiram perturbados novamente. Teriam de partir, afastar-se um do outro. Partilharam sentimentos demais para que a despedida fosse natural. Não eram amigos, tão pouco conhecidos. Não sabiam os nomes um do outro, não trocaram telefones. Apenas partilharam da mesma perturbação com os costumes cotidianos.

E sem dizer mais nada. Ela levantou e caminhou porta a fora. Ele a seguiu, precisava ao menos dizer adeus.

E ela o esperava. Imersa na escuridão da madrugada, olhou-o dentro dos olhos.

Como se tivessem combinado, deram-se as costas. Não suportaram ver a si mesmos no outro. Estavam seguros com o resto do mundo, que não os compreendia.

E caminharam caminhos opostos.

E ele não foi forte como ela, virou-se parar ter certeza de que ela não o observava de longe.

E ela foi mais fraca que ele. Após virar a esquina, sentou na calçada e chorou.

8 de fev. de 2009

Espere por mim

Tudo começou com a chuva. Se não estivessem caindo aquelas gotas provenientes das nuvens negras acima, talvez ela não tivesse se abrigado naquela casa. mentira, sempre quisera entrar ali. A chuva foi apenas a desculpa mais viável na hora.

Voltava da festa acompanhada por aquele amigo. Amigo, não. ele era um ex-qualquercoisa que ela não sabia classificar. Ele era... era aquele sorriso enigmático, aqueles olhos profundos... aquele que a fazia perder a vontade de respirar para não desviar os sentidos e aquele que a fazia desejar morrer em sua ausência... ele era aquele pra quem ela escreveu quatorze paginas... ele era quem a deixava livre para desejar os desejos mais loucos, sanguinários, sadomasoquistas, românticos e extravagantes.

Combinaram que ele a acompanharia até sua casa e ela esperaria no portão até que os pais dele chegassem para busca-lo. Começara a chover bem antes disso. Ela tirou os sapatos e pos-se a caminhar descalça pela cidade, rindo das coisas que ele contava ou irritando-o com apelidos absurdos. O plano era tomar banho de chuva na ida pra casa. quem sabe conseguiria convence-lo a entrar, tomar banho (com ela) e trocar de roupa antes de ir pra casa. ela ainda tinha as roupas que ele deixara em sua casa. guardadas cuidadosamente. Carinhosamente esquecidas.

Garoava enquanto caminhavam, tropeçavam, riam, caiam, levantavam. Tomavam cuidado para não se machucar, embora ambos desejassem com todas as forças restantes. E quando começou a chover forte, ela viu a casa em construção surgir na esquina. Correu. Correu como a tempos não corria. Correu como corria para encontra-lo quando ele desaparecia. Correu demais com a desculpa de não estragar o cabelo. Ele riu e perguntou se ela ainda lembrava do banho de chuva que tinham combinado. A moça apenas sorriu.

Entraram na construção. Estava escuro, sombrio, quase macabro. Era um daqueles momentos em que começaria tocar a musica de suspense ou a de romance. Daqueles momentos que ela passaria a vida toda recordando. Olhou nos olhos dele.

O que ele viu foi pouco devido a ausência quase total de luz, mas bastou para prepara-lo para o golpe final. De alguma forma, ele sabia que era o fim. Chovia. Ela estava descalça. Noite. Escuro. Os dois sozinhos.

Eles sabiam que na mente do outro, soavam as mesmas notas. Nenhum poderia explicar. Ela estava pálida, segura, fria. Ele, serio e preocupado. Voce tem certeza, ele perguntou. Não achou que fosse por acaso, ela tinha a voz mais firme que ele esperava.

E chovia forte.

Tomaram alguns comprimidos antes dela entregar a faca a ele. beijaram-se com a superfície fria tocando-lhes o peito. Era aquilo. Sempre fora a perspectiva de morrer que os aproximara. Sempre fora a perspectiva de morrer que os afastara. Sob a esfera da morte, beijaram-se como nunca antes. Entregaram-se um ao outro. Ela esperava que ele pudesse sugar a sua alma pela boca, mata-la enquanto estivesse naquele estado em que nem o seu corpo lhe pertencia. Era dele, apenas. Sempre fora. Ele desejava que ela vacilasse. Não era justo que fizesse com ele. não tinha sido idéia dela.

Mentira, tinha. Ele se arrependia de ter dado credito àquela idéia sanguinária, violenta, apaixonada e cruel proveniente de uma mente tao doentia quanto a dele. Abraçou-a e deixou a faca escorregar de suas mãos. O objeto beijou o chão com calma e paciência. Voce precisa ir pra casa, tentaria convence-la. não adianta me afastar agora, vamos terminar o que nos dispusemos a começar, ela insistiria e ele bem sabia. Então vamos tomar um banho de chuva primeiro, antes que ela argumentasse, puxou-a para fora da casa em construção de modo que ficasse encharcada como ele. voltou a abraça-la

Eu tenho uma condição, ela cederia, enfim. Quero que voce não me deixe mais, não vá mais embora e me deixe sozinha, prometa!, seria mais difícil do que imaginara. Voce sabe que eu..., ele não gostava de coisas daquele genero, apenas se preocupava com ela. Eu sei que eu te amo e se tiver que morrer pra te provar isso que seja, ela fez menção de voltar para apanhar a faca.

No instante que ele levou para segura-la, um relâmpago iluminou o céu. A maquiagem dela, ele pode ver novamente, estava borrada. Não de chuva, de lagrimas. Aquilo o perturbava. Me diga o que aconteceu com voce!, ele gritou. Acontece que eu não sei o que fazer sem ter voce ao meu lado, nem que seja apenas como amigo, acontece que eu te amo como nunca amei ninguem e eu sou exagerada o suficiente pra voce acreditar em tudo que digo, eu sei que voce acredita porque vejo isso nos seus olhos quando seu corpo se fecha pra esconder, não há bandido cuja mascara cubra os olhos. Ela estava inflamada de paixão.

A moça sentia uma pontada de febre apoderar-se dela.

Chovia.

Chovia forte.

Não suportou olhar pra ele. entrou na casa. deixou a faca ainda no chão. Ele seguiu-a, tentaria impedir qualquer atitude precipitada.

Relâmpagos e raios cortavam o céu em fúria.

Não era um filme de terror, nem romântico. Era o filme deles cujo gênero ninguem sabia.

Ela tinha a mão direita por baixo do vestido. Ele observava curioso e assustado, uma interrogação enorme preenchia sua mente. no momento seguinte, a mão dela encontrou a parede. Agora ele podia ver o contorno de um coração.

Mais uma vez, ela levou a mão pra baixo. Ele estava incapacitado de agir. Talvez ela o mantivesse preso com uma corda invisível. A corda do medo. Nunca subestime-o, ela costumava dizer.

Quando olhou novamente para a parede pode ver seu nome dentro do coração que ela desenhara e logo abaixo os dizeres; eu te amo, idiota! Uma declaração de amor proveniente da ultima menstruação que ela teria.

Ele riu.

Ela segurou a arma que tirou da bolsa com firmeza. Antes que ele percebesse, antes que o riso terminasse, atirou. A bala o atingiu diretamente na cabeça. Ele não dissera que a amava. Não a amava, afinal. Por isso, devia morrer.

Chovia.

Chovia bastante quando ela apontou a arma para si e apertou novamente o gatilho.

Terminou com chuva. O proprietário mandou derrubar a casa e vendeu o terreno a um estrangeiro. As famílias nunca chegaram a conversar. Ninguem reconheceu a letra dela. Escrevera em outra língua, a língua do amor louco e unilateral que somente poderia vir daquela mente doentia.

No rosto pálido e sem vida dela, estampava-se a paixão sem limites ou conseqüências. No dele, as três palavras por ele nunca ditas; ‘espere por mim’.

3 de fev. de 2009

Escuta!

Escuta o rugido inaudível da alma em chamas.

 

Fogo!

Terminariam todos no fogo.

Rolariam pela brasa do inferno.

 

Vê o vazio que segue pele casa.

Conhece-a bem.

Entrou, já. Passou pela porta, sentou no sofá da sala.

Puxou-a para que sentasse em seu colo.

Jogou-a contra a parede e a beijou.

Lambeu-lhe os lábios.

Deixou as mãos percorrerem o corpo magro a sua frente.

Magro. Sujo. Infame.

Foi até a cozinha. Abriu a geladeira. Bebeu água.

Subiu as escadas.

Entrou no quarto. ela o aguardava.

Deitada na cama - nua.

Pálida. Magra. Suja. Infame.

Lambeu-a. Penetrou-a. Lambuzou-se.

Desceu as escadas.

Lavou as mãos.

Partiu.

E agora não escuta mais os soluços que correm pela casa com a voz vacilante.

Ela espera.

Teme.

Suporta.

Treme de frio e medo.

Agonia e traição.

Angustia e desespero.

 

Agora não escuta o leve som dos passos incertos que ela dá.

Rumo ao nada.

Sem direção alguma.

Seguros de morrer.

Ela caminha devagar.

Possuída pela angustia de ser.

Tomada pelo tédio enfadonho e perverso da ausência.

Não escuta a própria crueldade.

Não se vê no espelho.

Evita-o.

Evita a todos.

Evita a si própria.

Ignora a maçã que ela oferece.

 

Não é mulher.

É cobra.

Cobra traiçoeira.

É fagulha.

Risco de fogo que arde na pele.

É sangue.

A menstruação que corre pelas coxas machucadas.

É o riso contido.

O poema inacabado.

O gozo interrompido.

 

Escuta!

 

Escuta o grito.

Arde no fogo.

Sente!

Pára!

Respira!

Escuta... escuta...

 

 

Silêncio.

2 de fev. de 2009

Esclarecimento

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações que aqui caleidoscopicamente registro." Clarice Lispector