Tudo começou com a chuva. Se não estivessem caindo aquelas gotas provenientes das nuvens negras acima, talvez ela não tivesse se abrigado naquela casa. mentira, sempre quisera entrar ali. A chuva foi apenas a desculpa mais viável na hora.
Voltava da festa acompanhada por aquele amigo. Amigo, não. ele era um ex-qualquercoisa que ela não sabia classificar. Ele era... era aquele sorriso enigmático, aqueles olhos profundos... aquele que a fazia perder a vontade de respirar para não desviar os sentidos e aquele que a fazia desejar morrer em sua ausência... ele era aquele pra quem ela escreveu quatorze paginas... ele era quem a deixava livre para desejar os desejos mais loucos, sanguinários, sadomasoquistas, românticos e extravagantes.
Combinaram que ele a acompanharia até sua casa e ela esperaria no portão até que os pais dele chegassem para busca-lo. Começara a chover bem antes disso. Ela tirou os sapatos e pos-se a caminhar descalça pela cidade, rindo das coisas que ele contava ou irritando-o com apelidos absurdos. O plano era tomar banho de chuva na ida pra casa. quem sabe conseguiria convence-lo a entrar, tomar banho (com ela) e trocar de roupa antes de ir pra casa. ela ainda tinha as roupas que ele deixara em sua casa. guardadas cuidadosamente. Carinhosamente esquecidas.
Garoava enquanto caminhavam, tropeçavam, riam, caiam, levantavam. Tomavam cuidado para não se machucar, embora ambos desejassem com todas as forças restantes. E quando começou a chover forte, ela viu a casa em construção surgir na esquina. Correu. Correu como a tempos não corria. Correu como corria para encontra-lo quando ele desaparecia. Correu demais com a desculpa de não estragar o cabelo. Ele riu e perguntou se ela ainda lembrava do banho de chuva que tinham combinado. A moça apenas sorriu.
Entraram na construção. Estava escuro, sombrio, quase macabro. Era um daqueles momentos em que começaria tocar a musica de suspense ou a de romance. Daqueles momentos que ela passaria a vida toda recordando. Olhou nos olhos dele.
O que ele viu foi pouco devido a ausência quase total de luz, mas bastou para prepara-lo para o golpe final. De alguma forma, ele sabia que era o fim. Chovia. Ela estava descalça. Noite. Escuro. Os dois sozinhos.
Eles sabiam que na mente do outro, soavam as mesmas notas. Nenhum poderia explicar. Ela estava pálida, segura, fria. Ele, serio e preocupado. Voce tem certeza, ele perguntou. Não achou que fosse por acaso, ela tinha a voz mais firme que ele esperava.
E chovia forte.
Tomaram alguns comprimidos antes dela entregar a faca a ele. beijaram-se com a superfície fria tocando-lhes o peito. Era aquilo. Sempre fora a perspectiva de morrer que os aproximara. Sempre fora a perspectiva de morrer que os afastara. Sob a esfera da morte, beijaram-se como nunca antes. Entregaram-se um ao outro. Ela esperava que ele pudesse sugar a sua alma pela boca, mata-la enquanto estivesse naquele estado em que nem o seu corpo lhe pertencia. Era dele, apenas. Sempre fora. Ele desejava que ela vacilasse. Não era justo que fizesse com ele. não tinha sido idéia dela.
Mentira, tinha. Ele se arrependia de ter dado credito àquela idéia sanguinária, violenta, apaixonada e cruel proveniente de uma mente tao doentia quanto a dele. Abraçou-a e deixou a faca escorregar de suas mãos. O objeto beijou o chão com calma e paciência. Voce precisa ir pra casa, tentaria convence-la. não adianta me afastar agora, vamos terminar o que nos dispusemos a começar, ela insistiria e ele bem sabia. Então vamos tomar um banho de chuva primeiro, antes que ela argumentasse, puxou-a para fora da casa em construção de modo que ficasse encharcada como ele. voltou a abraça-la
Eu tenho uma condição, ela cederia, enfim. Quero que voce não me deixe mais, não vá mais embora e me deixe sozinha, prometa!, seria mais difícil do que imaginara. Voce sabe que eu..., ele não gostava de coisas daquele genero, apenas se preocupava com ela. Eu sei que eu te amo e se tiver que morrer pra te provar isso que seja, ela fez menção de voltar para apanhar a faca.
No instante que ele levou para segura-la, um relâmpago iluminou o céu. A maquiagem dela, ele pode ver novamente, estava borrada. Não de chuva, de lagrimas. Aquilo o perturbava. Me diga o que aconteceu com voce!, ele gritou. Acontece que eu não sei o que fazer sem ter voce ao meu lado, nem que seja apenas como amigo, acontece que eu te amo como nunca amei ninguem e eu sou exagerada o suficiente pra voce acreditar em tudo que digo, eu sei que voce acredita porque vejo isso nos seus olhos quando seu corpo se fecha pra esconder, não há bandido cuja mascara cubra os olhos. Ela estava inflamada de paixão.
A moça sentia uma pontada de febre apoderar-se dela.
Chovia.
Chovia forte.
Não suportou olhar pra ele. entrou na casa. deixou a faca ainda no chão. Ele seguiu-a, tentaria impedir qualquer atitude precipitada.
Relâmpagos e raios cortavam o céu em fúria.
Não era um filme de terror, nem romântico. Era o filme deles cujo gênero ninguem sabia.
Ela tinha a mão direita por baixo do vestido. Ele observava curioso e assustado, uma interrogação enorme preenchia sua mente. no momento seguinte, a mão dela encontrou a parede. Agora ele podia ver o contorno de um coração.
Mais uma vez, ela levou a mão pra baixo. Ele estava incapacitado de agir. Talvez ela o mantivesse preso com uma corda invisível. A corda do medo. Nunca subestime-o, ela costumava dizer.
Quando olhou novamente para a parede pode ver seu nome dentro do coração que ela desenhara e logo abaixo os dizeres; eu te amo, idiota! Uma declaração de amor proveniente da ultima menstruação que ela teria.
Ele riu.
Ela segurou a arma que tirou da bolsa com firmeza. Antes que ele percebesse, antes que o riso terminasse, atirou. A bala o atingiu diretamente na cabeça. Ele não dissera que a amava. Não a amava, afinal. Por isso, devia morrer.
Chovia.
Chovia bastante quando ela apontou a arma para si e apertou novamente o gatilho.
Terminou com chuva. O proprietário mandou derrubar a casa e vendeu o terreno a um estrangeiro. As famílias nunca chegaram a conversar. Ninguem reconheceu a letra dela. Escrevera em outra língua, a língua do amor louco e unilateral que somente poderia vir daquela mente doentia.
No rosto pálido e sem vida dela, estampava-se a paixão sem limites ou conseqüências. No dele, as três palavras por ele nunca ditas; ‘espere por mim’.