“São bruxas e fadas”
Nos becos morrem mendigos, indigentes, escória.
Nos bares dançam mulheres nuas.
Nas esquinas dançam pessoas vestidas.
Nos escritórios apagam-se as luzes.
Nas casas servem-se jantares.
Saboreia a cidade depois do anoitecer. As cores reais de qualquer uma. A negação da realidade e a crença obsessiva em um qualquer nada que não contradiga o que pensam os burgueses. Sejam burgueses que morrem nas sarjetas ou no interior de jatinhos particulares.
São todos a mesma massa que se consome. Dela se gera. Dela sobrevive. A ela se extingue.
Ao amanhecer, recolhem-se os corpos. Alimentam-se os sobreviventes.
Alimentam-se os corvos, os doutores, padres, policiais, prostitutas, ladrões, estudantes, camelôs e crianças. Diferenciam-se por uma linha tão fácil de ser rompida que todo cuidado para não quebrá-la é pouco. É muito pouco.
O salário é pouco. A comida é pouca. O amor é pouco.
A poesia é tanta que perdeu o sentido.
As vozes são tamanhas que se confundem e se vão sem que seja possível ouvir ou distingui-las uma das outras.
E a cidade se consome pouco a pouco. Alimenta-se do amor urbano, bebe as mortes frias, violentas e calculadas. Crimes que ocupam os jornais. Pornografia infantil. Incesto. Ferozes devoradores de palavras que lêem sem interpretar. Vorazes assaltantes lícitos.
E a cidade enlouquece com drogas comuns. E as pessoas buscam. Correm. Procuram. E não encontram.
E os dias passam sem se diferenciar e as noites acabam e o sol se esconde e a chuva cai e tudo é a mesma coisa. E o empresário propõe um aumento ao funcionário que faz seu trabalho por um salário mínimo, dando graças por ele existir. E a prostituta propõe um programa por seu preço, cuidadosamente definido por seus caprichos. Tudo é a mesma coisa.
Todos são iguais perante as leis. Todos são iguais perante tudo. Todos são iguais perante as classes sociais. Imutáveis e renovadas a cada dia.
A menina se maquia para esconder as feridas abertas na alma. Abusada, humilhada e deprimida, lança seu preço a noite da mesma forma que o fez durante o dia.
Manhã de sol: sentou-se em frente ao patrão, ‘Faço isso, isso e isso’ e pediu um preço.
Noite: debruçou-se na janela do carro estacionado na rua, ‘Faço isso, isso e isso’ e pediu um preço.
Ao voltar pra casa, retira a maquiagem e tenta dormir.
Mas a cidade não permite. Ela cometeu um crime. Crime urbano, banal.
E enquanto a cidade se devora, em sua cama de lençóis vermelhos, ela sonha com bruxas e fadas.
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